Opinião

Nostalgia Digital – O que achamos serem memórias

Há cerca de quatro décadas vimos o mundo analógico reformar-se, sentar-se no sofá e dar lugar à era digital. Partimos de uma sociedade industrial, que concretizava mecanismos laborais e comunicativos com uma maior proximidade entre indivíduos, e que se encontrava perante a permanente necessidade de fazer evoluir sistemas que facilitassem a vida quotidiana. Esta evolução será feita através da compreensão de conceitos abstratos ligados à informática, como é caso dos microprocessadores.

O conceito analógico – esta é para os que, em meio académico, não tiveram de levar com longas horas sobre a história dos media – está vinculado à analogia que, aplicada, consiste na comparação dos objetos da era com o mundo real, acabando por serem, naturalmente, mais palpáveis que os meios da era digital.

No que toca ao mundo da imagem e do vídeo, o digital veio substituir o filme fotográfico pela revolução da captação, conservação e revelação praticamente instantânea. Quando antigamente – e, como veremos, o antigamente está cada vez mais perto – se tirava uma foto, só poderíamos voltar a vê-la após concluirmos o rolo. Esta fita dançante que percorre a máquina fotográfica contém uma capacidade padrão de trinta e cinco captações que, posteriormente, serão alvo de uma revelação dolorosa, pelo menos para a nossa carteira. Nada nos garante, no entanto, que acabássemos com o total de fotos captadas na nossa posse. Dependendo da máquina, das nossas capacidades fotográficas e da qualidade do espaço onde mandássemos revelar, muitas vezes poderíamos vir a obter somente uma parte das imagens, causada pela margem de erro e destruição no processo. O mesmo acontece no vídeo. Também as cassetes foram substituídas e reduzidas a uma funcionalidade da câmara. Facilmente encontramos uma máquina fotográfica que calha ter o pormenor de também fazer vídeo. Estamos perante a perda de protagonismo do vídeo, podemos dizer. 

Mas será possível afirmarmos que não só estamos perante a perda da conceção do ato de captar até há uns anos realizado, mas também, consecutivamente, da mudança na forma como as nossas memórias são criadas? 


Fonte: Facebook (Sixstreetunder) | Autoria: Craig Whitehead

Desde que entrei para a faculdade tanto me aproximei do meio digital – nunca na minha vida até esse ponto tinha mexido numa máquina fotográfica atual ou pegado num computador que não se estivesse a deteriorar – como fui ganhando interesse pela vertente analógica. Para além de mim, vi esta preferência atingir outros meus colegas. 

Comecei por obter uma máquina fotográfica point-and-shoot, mas posteriormente cheguei à conclusão de que foi uma má compra e acabei por, inevitavelmente, me apropriar da antiga câmara de filmar do meu pai. Funciona a cassete e, de modo a evitar longas pesquisas em busca do modelo em questão, guio-me por um termo mais acessível: trata-se de uma “câmara de turista” que tem um ecrã lateral de visualização.

Rapidamente me apercebi de um pormenor, ao qual acredito que até certo ponto já tenhamos todos chegado. Tanto no que toca à point-and-shoot, como também a uma instax que esqueci que possuía, notei que o processo de captação era bastante demorado, comparativamente às digitais. Não me refiro de todo a uma incapacidade das analógicas, mas à maneira como abordamos a sua captação. 

Vejamos a situação aplicada. Vou a um concerto e levo comigo uma máquina fotográfica analógica, sem qualquer rolo adicional para além do que está por estrear, ou, em segunda opção, levo uma máquina fotográfica digital. O mais provável de acontecer é acabar por tirar uma quantidade maior de fotos na segunda situação do que na primeira. O porquê de isto acontecer é claro: na primeira ocasião sujeitar-me-ia a um limite de 35 fotos, enquanto que se possuísse uma máquina digital limitar-me-ia à capacidade do meu cartão de memória que certamente iria muito além de três dezenas. 

Portanto, vimos de um concerto, todos contentes, vamos para casa descansar um pouco e quando damos por nós já se passaram dois anos. Por um motivo irrelevante, vem à conversa o dia correspondente ao concerto a que fomos e renasce em nós uma nostalgia sobre esse evento. O que está em questão é que, relativamente à situação dada, a nostalgia vai ser motivada a partir de cada pormenor, sendo um deles a forma como captámos o momento.

É do conhecimento geral que, estando mais limitada, a captação analógica será consecutivamente mais cuidada. Procuramos apenas momentos dignos de serem captados e o resto tentamos absorver ao máximo de forma a não nos fugir à memória mais tarde. Em consequência, o oposto acontecerá, intencionalmente ou não, quando fotografamos de forma digital. Não tomaremos tanta atenção ao que estamos a presenciar, mas ao que estamos a captar. É de forma inevitável que vamos desaguar ao típico raciocínio “hoje em dia só se vê pessoas de telemóvel na mão nos concertos”. Vamos lá chegar, porque é a realidade. O que acontece é que, ao estarmos mais propícios a fotografar o que vivemos, estamos, de certa forma, a perder o momento. No máximo, estamos a viver uma pequena parte que se limita ao ecrã do nosso telemóvel ou da nossa máquina fotográfica. 

Isto mexe com a maneira como memorizamos e processamos aquele sentimento de algo que já passou e não volta. Creio não ser descabido afirmar que, de ambas as situações dadas anteriormente, na primeira o sujeito estaria mais apto a recordar o que teria vivido, como também, algo mais complexo, transportar o que sentiu no passado para o presente.


Fonte: Facebook (Sixstreetunder) | Autoria: Craig Whitehead

Este cenário agrava-se a partir do momento em que percebemos não só que nos inserimos numa sociedade prejudicada pelas consequências negativas que o digital carrega, mas também estas manipulam a forma como percecionamos a nossa vivência.

Em diversas ocasiões do quotidiano fomos alertados para o jogo de cintura que o nosso cérebro inicia e a forma como a única resposta que damos é seguir avante com a situação. Este caso não é exceção. Se o nosso inconsciente nos finta em diversos períodos, então é certo que também irá cobrir os buracos que os meios digitais nos deixam na memória. Quantas vezes já aconteceu, em grupo, falar-se de um evento passado e cada pessoa ter perspetivas diferentes? Ou, por exemplo, referirmo-nos a algo que o mais provável é não ter acontecido da forma como o pintamos?

Creio que, sendo assim, automaticamente todas as pessoas que estejam intrinsecamente ligadas a meios de comunicação e informação e os usem como fonte de lembrança sejam alvo de uma ilusão de nostalgia. É certo que é praticamente impossível combater com a globalização do digital, principalmente das redes sociais, pois são estas que nos atraem para o lado que lhes convém. O ideal seria o indivíduo, dependendo do seu contexto social, criar uma consciencialização que lhe permitisse ter controlo sobre as suas ações e, posteriormente, no que será feito das suas memórias. Criar equilíbrio, principalmente. Porque, e espero não estar a exagerar, se continuarmos a ver este processo digital a evoluir, iremos caminhar no rumo de uma perda de identidade e de individualidade. Uma perda de pluralismo, no fundo.

Por Margarida Ramos

Artigo revisto por Constança Lopes

AUTORIA

+ artigos

Estuda audiovisuais, no entanto sempre teve necessidade de se comunicar através da escrita. Foi no secundário que começou por incentivo dos professores a desenvolver críticas e a escrever poesia. Agora, tem como principal interesse o Cinema, onde tenciona dedicar-se, futuramente. Outro fator importante para si é também a análise e crítica de assuntos sociais que lhe parecem exigir maior atenção.