Opinião

“O Mercado das Personalidades”

Experiências Fragmentadas e os Media

Com o fim do Iluminismo e com a compreensão de que a identidade não é estável nem imóvel, surge no indivíduo uma dificuldade em expressar-se, e, com isso, uma crise existencial. A resposta da sociedade capitalista a esta crise de fragmentação de valores e experiências consiste no consumo em massa como a única maneira de as pessoas se definirem. — “You are what you buy.

Coloca-se então a questão: Onde fomos buscar os valores que não são demonstráveis pelo que consumimos? E a resposta é: aos media. Vivemos numa sociedade desconectada que, para compensar a fragmentação, ficou obcecada pelo consumo em massa e imagens visuais; a nossa vida é muitas vezes mediada apenas por aquilo que vemos na televisão.  Assim sendo, a televisão imita a realidade, essa realidade transmitida pela televisão inspira um filme, esse filme inspira outro filme, e o resultado final é uma realidade alterada e simplificada que podemos chamar de “hiper realidade”. Já que esta é mais simples, muitas vezes é mais fácil optar pela “hiper realidade” em vez de lidar com a complexidade da realidade; vamos passar a entender como este fenômeno afeta a nossa perceção do amor.

Fonte: Nabil Saleh

O Mercado de Personalidades

Na maior parte dos filmes e séries, vemos o amor representado como algo passivo, que vem até nós naturalmente — é ele que nos acha, e não o contrário. Rodeados deste amor passivo em filmes, séries, livros, músicas, nas redes sociais e em qualquer canto possível, tomamo-lo como algo desejável, e enquanto esperamos pelo amor vamos tentando tornar-nos mais fáceis de amar. Neste período de tempo, a pessoa torna-se uma marca e coloca-se no mercado, oferecendo benefícios enquanto procura alguém para satisfazer as suas necessidades, criando assim uma dinâmica de “o que posso fazer por ti e o que podes tu fazer em troca” onde o amor é visto como um meio para atingir um fim — evitar sentimentos de solidão e inseguranças.

Nasce assim um mercado de personalidades evidenciado cada vez mais por aplicações como Tinder, Badoo e Bumble, onde as pessoas são consumidores e produtos ao mesmo tempo. Ao monetizar e mercantilizar as relações que estabelecemos estamos a desumanizar a sua essência, o que resulta num aborrecimento rápido, e, por isso, tantas relações correm mal nos dias de hoje — isto é apenas um reflexo dos valores consumistas da sociedade a entrarem nas nossas relações interpessoais.

Neste tipo de relações de troca de benefícios o que vemos não é amor, mas sim reflexos de indivíduos que não se conhecem a si mesmos.

A Arte de Amar

O que é então amor? Para Erich Fromm este é a única solução ao problema da existência humana, sendo este a consciência da separação: “somos seres conscientes da nossa existência solitária, conscientes de que estamos separados de todos os outros seres e em último caso só nos temos a nós mesmos.”

Quando concentrados no mercado de personalidades, vamos tentar, com as trocas mútuas de benefícios com outras pessoas, evitar sentimentos negativos. Um exemplo perfeito deste mercado baseado no amor passivo em ação é o pós-término de uma relação, onde o indivíduo começa logo a pensar em como melhorar os seus atributos para que isto não aconteça de novo quando o amor o achar outra vez.

No seu livro A Arte de Amar, Fromm diz que o amor não é uma coisa ou um objeto, mas sim uma habilidade. Não é um nome mas sim um verbo — é ativo. “(…) é uma afirmação apaixonada de um objeto, não é um efeito, é um esforço ativo e uma inter-relação cujo objetivo é o crescimento da felicidade e da liberdade do seu objeto.”

Sendo o amor uma habilidade, é preciso desenvolvê-la, mas porque é que encontramos tanta dificuldade em fazê-lo?

O amor deve incluir a ação de nos darmos: dar os nossos pensamentos, o nosso humor, as nossas tristezas e alegrias em vez de dar benefícios tangíveis; é então impossível amar alguém até conseguirmos amar toda a gente, caso contrário estaremos inconscientemente a escolher a pessoa com a qual nos queremos relacionar em função de como ela nos vai beneficiar. Ao aprendermos a estar felizes sozinhos, paramos de ter esta lista de necessidades que as outras pessoas precisam de satisfazer, e então o amor torna-se no ato de amar a pessoa e não o que ela nos dá. É neste sentido que o amor surge como solução à solidão existencial, pois estaremos a criar uma ligação com alguém sem qualquer relação a fatores externos.

Fonte: Erich Fromm por Müller-May

Parece simples em teoria, mas é difícil de pôr em prática, tanto que Erich Fromm caracteriza o amor como um fenómeno raro que deve ser visto como arte — a arte vive no artista tanto como o artista vive nela. Tendo isto, o amor não é sobre uma procura intensa, é sobre melhorar e dominar uma técnica. Para o conseguir, o indivíduo tem de mergulhar neste esforço contínuo que requer humildade para evitar a projeção nos outros, coragem para ir contra o desconforto de quebrar padrões e mudar hábitos, confiança no processo para não assumir que é impossível e disciplina para nos relembrarmos de que não é um processo passivo.

É também necessário construir o amor próprio: parte de amar outros é amarmo-nos para sermos saudáveis o suficiente e conseguirmos pôr a teoria em prática. Para isto, é suposto emergir a nossa vida neste esforço ativo, mas além de termos uma barreira de paciência e esforço, temos ainda uma barreira cultural nascida da sociedade capitalista, que em vez de impulsionar uma busca ativa ao amor, impulsiona a busca ativa pelo sucesso, dinheiro, poder e prestígio, que correm na direção oposta ao amor.

É nossa responsabilidade não deixar um sistema criado por nós moldar todos os aspetos da nossa vida e tomar conta dos mesmos— é necessário agir enquanto o amor é raro. Será um problema ainda mais difícil de corrigir quando a sua essência for inexistente numa sociedade de personalidades com etiquetas.

Fonte da capa: Unsplash

Artigo revisto por Beatriz Santos

AUTORIA

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Com interesses em várias áreas, a experimentação faz parte do currículo da Joana. Atualmente estudante de Publicidade e Marketing na Escola Superior de Comunicação Social, quer desenvolver o amor que tem pela escrita utilizando a Magazine como ponto de partida. Desde a música, passando pela política, filosofia e até ficção, são várias as áreas onde pretende deixar as suas palavras escritas.