Uma chávena de cultura e uma lição de história
And now for something completely different:
No início do século XX, pairava na cidade de Lisboa um cheiro a mudança: cisões, dissidências e a génese de novas forças partidárias, maquinações e encontros entre republicanos revolucionários, a ascensão de João Franco (que prometia “governar à inglesa”), os climáticos assassinatos às figuras regentes, e muitas outras premonições. A esfera política sofria de uma instabilidade sem precedentes. A paisagem cultural era abalada por protestos acérrimos ao tradicionalismo artístico. Semeavam-se os ventos de mudança.
Havia ainda um outro cheiro que cobria a capital: um olor a grãos moídos oriundos das ex-colónias além-mar. O faro, não só lisboeta, mas também Europeu, esforçava-se, à época, para separar estes odores. Um esforço que se revelou infrutífero, já que o encaixe entre estes dois universos, o do espaço e o do debate, era, como dizia George Steiner, natural – “o café é um local de entrevistas e conspirações, de debates intelectuais e mexericos, para o flâneur e o poeta ou o metafísico debruçado sobre o bloco de apontamentos, (…) uma franco-maçonaria de reconhecimento político ou artístico-literário e presença programática.”. As ideias abstratas enraizadas em Frankurt de racionalidade comunicativa e da esfera pública encarnavam a época. Com uma abertura total aos cidadãos e estrangeiros vivia-se, dentro daqueles estabelecimentos aparentemente tão simples, o pulsar da democracia intelectual. A negação dos argumentos de autoridade, a copresença física para evitar a manipulação comunicativa e o uso público da razão: estavam presentes os ingredientes para atingirmos uma sociedade de esclarecimento.
Neste “jardim da Europa à beira-mar plantado” pulsava este mesmo sangue: locais como o Nicola, o Marrare, ou o Botequim das Parras eram focos de atração para uma multitude de poetas e escritores. Alguns deste ainda se mantêm como pilares históricos: o velhote Café Martinho (mais vulgarmente conhecido como Martinho da Arcada) na Praça do Comércio é, ainda hoje, sinónimo de arte e de cultura, graças a clientela como Cesário Verde, Bocage e, já numa fase posterior da sua vida, Fernando Pessoa. É em 1905 que nasce no largo do Chiado um dos mais relevantes foco de proliferação cultural e de tertúlia escolástica na história literária portuguesa: A Brazileira, com o cognome de “Casa especial de café do Brazil”.
Foi tímida a iniciação de A Brazileira no mundo do debate artístico. Só mais tarde, aquando da implantação da república portuguesa, a 5 de outubro de 1910 e da subsequente instalação da sede e do diretório do Partido Republicano Português no Largo de São Carlos, é que a popularidade do café subiu exponencialmente. Um golpe de sorte geográfico, poderíamos talvez dizer.
É dentro destas quatro paredes que podemos situar as raízes do movimento Modernista português. Entre tabaco, absinto e café, que, reza a lenda, seriam vítimas de mistura, criando o termo popular “bica com cheirinho”, lia-se e escrevia-se. Pessoa, Garrett, Sá-Carneiro e os seus capangas criaram naquelas mesmas mesas provavelmente a mais infame revista na história cultural portuguesa – Orpheu.
A agonia desta geração literária, desiludida com o conservadorismo e com aquilo que consideravam ser o já ultrapassado cânone cultural à época, é bem sumariada pela introdução de Luis de Montalvôr ao primeiro número do projeto trimestral:
“ORPHEU, é um exilio de temperamentos de arte que a querem como a um segrêdo ou tormento… (…) A photographia de geração, raça ou meio, com o seu mundo immediato de exhibição a que frequentemente se chama literatura e é sumo do que para ahi se intitula revista, com a variedade a inferiorisar pela egualdade de assumptos (artigo, secção ou momentos) qualquer tentativa de arte—deixa de existir no texto preocupado de_ ORPHEU_. Isto explica nossa ansiedade e nossa essencia!”
A receção foi deplorável. Tal como aconteceu posteriormente com Ulisses de James Joyce, o trabalho da Geração de Orpheu foi incompreendido e acusado de ser absurdamente pretensioso: a vanguarda na escrita dos modernistas e a utilização de novas práticas literárias como o Futurismo, o Sensacionismo ou o Simultaneísmo formaram um bloco sólido demasiado difícil de engolir pela população à época. Estava claramente à frente do seu tempo.
Depois do abandono e do subsequente suicídio de Mário de Sá Carneiro, do cancelamento da terceira edição da revista literária e do sufoco político do Estado Novo, a democracia intelectual caiu em infeliz desuso.
A Brazileira é agora pouco mais do que um local turístico situado por entre as brumas da memória de um movimento perdido. É um sítio de consumo que, salvo apenas pelo modelo arquitetónico que salta imediatamente ao olho, quase se tornou indistinguível de qualquer outro. A estátua de bronze de Fernando Pessoa que se encontra na esplanada do café é mais do que um monumento – é uma lembrança. Para não nos esquecermos daquilo que se passou naquele local, da influência que ele teve, e tem, na literatura e pintura portuguesa. O que foi aquele café e o que é agora: um ponto de turismo, onde os olhos de Pessoa estão há já muito encandeados pelos flashes de máquinas fotográficas.
AUTORIA
João Carrilho é a antítese de uma pessoa sã. Lunático, mas apaixonado, o jovem estudante de Jornalismo nasceu em 1991. Irreverente, frontal e pretensioso, é um consumidor voraz de cultura e um amante de quase todas as áreas do conhecimento humano. A paixão pela escrita levou-o ao estudo do Jornalismo, mas é na área da Sociologia que quer continuar os estudos.