Opinião

Carta aberta ao passado

Olá, avó.

Aposto que tinha saudades de saudações minhas. Também tinha saudades de as fazer. Espero que esteja bem porque eu também estou – demorei, mas estou.

Passei pela sua casa há uns meses e ela já não lhe pertence, sabe? O proprietário já é outro, mas a casa será sempre sua. Pareceu diferente – para pior – e o próprio prédio também. Sei que se visse nos íamos juntar a falar “menos bem” dos novos ocupantes. Não que seja de intrigas ou que me tenham feito alguma coisa, mas é difícil ver aquela casa com alguém que não a avó. Portanto, é sua e não falemos mais nisso. A planta enorme que tinha à porta também já não lá está. Trouxemo-la cá para casa e está enorme – a mãe tem jeito para cuidar dela, já eu até cactos deixo morrer.

Lembro-me dos nossos verões, avó, de outras épocas também e de uns serões aqui e ali, e sei que se lembra também. Das milhares de idas ao café depois de almoço e ao jardim nos fins de tarde, ao supermercado, à casa do lado e à casa do outro lado do rio, lá bem longe, visitar uma das suas irmãs. Não me deixava muito tempo sossegada e, até hoje, ouço os meus pais a dizerem que não “assento arraiais”. Porque haveria de o fazer, não é verdade?

E por falar em cafés, era maldade dizer-me para que pedisse a sua conta quando sabia perfeitamente que eu trocava os c’s pelos t’s. “Senhor, queria a tonta da minha avó”, dizia eu do alto dos meus quatro anos e era motivo de riso para si e para as suas amigas. Sinto que o fui a infância inteira, mas no bom sentido da coisa. Acho que é gozar com quem trabalha ter um nome começado com “c” quando nem os sabia dizer e ainda por cima os trocava pela letra “t”. O nome Catarina é relativamente recente. Quando era mais miúda chamava-me Tatarina e as suas amigas ainda fazem questão de me lembrar disso. 

Lembro-me também das sestas à tarde em que acordava, por vezes, a sentir o fresco de uma ventoinha no fundo do corredor – deixou-me com uma mania desgraçada que até hoje não curei. Lembro-me ainda das ‘brigas’ por volta das 18 horas porque eu queria ver Morangos com Açúcar e a avó queria ver o Preço Certo – a avó costumava ganhar, consigo eu perdia sempre. Lembro-me da comida que comprava só porque eu ia lá. Das músicas que cantava enquanto arrumava qualquer coisa e das expressões que usava, muitas delas caricatas, por sinal. As expressões inovadoras são um marco nesta família. Até hoje não sei o que é ter ‘cara de zorra’ ou o porquê de se falar da burra da tia Leonor – refiro-me ao animal, claro, coitada da tia. Podíamos criar um dicionário só com os significados das expressões que correm nestes genes.

Tenho medo de me esquecer de si, de esquecer a sua cara que ainda lembro, mas com menos pormenor, já não me lembro do seu cheiro, mas sei que usava água de rosas na cara todas as manhãs – e ainda deve usar que a avó é vaidosa –, já não me lembro bem do toque, mas vou-me lembrando da sua voz. O meu maior medo é esquecê-la, sabe? Seria injusto esquecer alguém tão memorável a tantos níveis. Há uns dias baralhei a sua data de aniversário, desculpe-me por isso, mas já sabe que às vezes nem percebo a quantas ando. Hoje em dia, talvez o nosso feitio batesse de frente um com o outro e iríamos, com certeza, discutir as suas opiniões controversas. Mais teimosa do que a avó só mesmo eu – e a mãe, às vezes.

Por vezes amaldiçoo-a por se ter ido embora sem deixar uma única receita da melhor sopa que já comi. A mãe às vezes quase chega perto do sabor, mas nunca provei igual – mão de avó, eu sei. Quanto às fatias de ovo, a mãe sabe igualar. Aqui em casa ainda rimos da quantidade de comida que nos dava. “Se estás gordinho, estás bom.” – Ok, avó, mas era preciso tanto?

Avó, as suas férias já vão longas e às vezes preciso mesmo – mesmo, mesmo, mesmo – de si. Percebo que precisasse de descansar, mas seis anos também já é uma brincadeira. Volte cá, avó, preciso que me deixe o legado da sopa e de um último beijinho. Havemos de nos ver um dia. Gosto de si.

Com amor,

A eterna tonta da avó.

Fonte da capa: Best HD Wallpaper

Artigo revisto por João P. Mendes

AUTORIA

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A escrita sempre foi um dos seus guilty pleasures. Desde pequena escrevia textos sobre tudo e sobre nada que entregava a alguém que nada conseguia fazer com eles. O seu intuito, com a entrada na revista, é deixar nas mãos de alguém os seus textos e opiniões de qualidade por vezes duvidosa – mas esforçada – e que esse alguém lhes veja utilidade. Nem que estes sejam, apenas, um entretenimento irrelevante porque a irrelevância também nos acrescenta algo.