Música no Coração: Revisitar um clássico
Há pouco mais de 65 anos atrás, no dia 10 de Janeiro de 1966, estreava em Portugal um dos maiores clássicos do cinema mundial: Música no Coração. O filme que chegara ao público norte-americano em março do ano anterior encanta até hoje milhares de pessoas por todo o mundo, tendo inspirado desde grandes e renomadas produções teatrais e cinematográficas, desde o mais recente La La Land até à cultura pop ‘mainstream’, através de músicas como “7 rings”, da Ariana Grande. Numa tentativa de preservar o rigor, é importante salientar que a minha relação pessoal com o filme vem sendo estabelecida desde minha infância, o que certamente influencia a perceção que tenho do mesmo hoje em dia. Cresci numa família de cinéfilos e arrisco-me a dizer que o meu amor por musicais surgiu assistindo a este filme na casa de minha avó, enquanto todas as três gerações ali presentes cantavam “Do Re Mi” e “Edelweiss”, acompanhando a linda história, baseada em fatos reais, da família Von Trapp.
A magnitude de influência deste filme é, entretanto, impressionante e inegável, não se limitando à minha experiência subjetiva. Poucas são as pessoas que nunca ouviram falar deste trabalho do renomado diretor e produtor Robert Wise, que foi indicado a 10 Oscars e ganhou 5 destes, incluindo o da categoria de “Melhor Filme”. Antes de a pandemia da Covid-19 tomar o mundo, todos os anos, aproximadamente, 300 mil pessoas visitavam Salzburg, a cidade austríaca em que a história se passa, por conta do filme. Existem centenas de rotas turísticas específicas para os visitantes que desejam conhecer, na região, os locais onde as cenas foram filmadas e onde morou a verdadeira família retratada na história.
Ainda que Julie Andrews não tenha conquistado a sua única estatueta da academia com este filme, Música no Coração é certamente um dos maiores trabalhos na sua longa carreira. A atriz, também conhecida pelos seus papéis como Mary Poppins ou até a Rainha Clarisse Renaldi (O Diário da Princesa), incorpora Maria Augusta Kutschera, uma jovem noviça, aspirante a tornar-se freira, residente da pequena cidade de Salzburg, no ano de 1938. Maria é uma moça muito ligada à música e à natureza. Espontânea, forte, indisciplinada e com um constante desejo por liberdade, ela acaba por ser muito diferente das outras freiras com quem vive, atrasando-se constantemente para as missas e descumprindo uma série de regras. A Reverenda Mãe (Peggy Wood), responsável pelas freiras e noviças, percebendo a personalidade ímpar de Maria e o seu desejo profundo em cumprir a vontade de Deus, designa-a para um trabalho inesperado e desafiador: ser governanta de sete crianças, filhos do estimado Capitão da Marinha austríaca, Georg Von Trapp (Christopher Plummer), que perdera a esposa alguns meses antes. No início, Maria mostra-se relutante em sair do mosteiro e em abandonar o seu chamado eclesiástico; porém, de maneira inspiradora, percebe que ela poderá vir a cumprir um propósito ainda maior: amar e servir as pessoas na casa daquela família desconhecida.
Na versão brasileira, com a qual eu cresci, o nome do filme é Noviça Rebelde. Vejo, atualmente, como o mesmo não faz sentido nenhum. Maria não é o tipo rebelde de pessoa, apenas possui uma personalidade forte e muita lealdade a si mesma, assim como um espírito muitas vezes infantil – fatores estes que não se encaixavam nos padrões esperados pelas irmãs no convento. Todavia, ela não se permite pestanejar ou fraquejar, mantendo a inspiradora positividade e confiança, ainda que os seus objetivos primários tenham sido frustrados. Ela possui também um ótimo sentido de humor, proporcionando bons momentos de descontração cómica para o filme, além de ser um exemplo de humildade. A construção da personagem é tão completa que é fácil sentir-se próxima dela. Ela pode estar por minutos sozinha numa cena em que o ritmo não é abalado e nem há espaço para o cansaço. Para tal, colabora a atuação de Andrews, que se entrega ao papel de uma forma espetacular.
Maria é tão forte e confiante nas suas convicções que não se deixa amedrontar, nem quando chega àquele que será o seu novo lar e conhece Georg Von Trapp, um homem muito austero e disciplinado que trata dos filhos e da sua casa como se ainda estivesse na marinha. Maria recebe uma série de instruções acerca do funcionamento da casa, o que revela a relação formal e distante que o Capitão mantém com os seus filhos. Isto afeta claramente os pequenos que, desde o início, tentam tramar travessuras com a nova governanta, assim como fizeram com todas as antecedentes, numa tentativa de chamarem a atenção do pai. Maria, percebendo que tudo o que Liesel (Charmian Carr), Friedrich (Nicholas Hammond), Kurt (Duane Chase), Brigitta (Angela Cartwright), Marta (Debbie Turner), Louisa (Heather Menzies) e Gretl (Kym Karath) desejam é atenção e carinho, acaba por cair nos erros antigos e quebra todas as regras estabelecidas pelo Capitão, de forma a aproximar-se das crianças e a dar-lhes uma infância cheia de diversão.
Desta forma, o lado materno de Maria é revelado à medida que a sua relação com os filhos do Capitão Von Trapp se vai desenvolvendo. Ela ensina às crianças não só a compor, cantar e tocar, trazendo um ambiente tranquilo e alegre para a casa, o que não existia desde a morte da matriarca, mas também a olhar para a vida como ela via: com positividade. Maria e Liesel, a mais velha dos sete, mantêm uma conexão especial. A menina – de dezesseis, mas quase dezessete anos – esconde do pai uma relação amorosa com Rolfe (Daniel Truhitte) – de dezessete, mas quase dezoito anos –, o carteiro. Quando Maria descobre sobre o segredo, opta por ajudar a menina e orientá-la, servindo como uma ótima confidente.
O posicionamento da governanta acerca da criação dos seus filhos desagrada a Georg no início, mas o que verdadeiramente vem a unir estes dois é a maneira como a antiga noviça lhe mostra o quão afortunado ele é por ter os filhos que tem e o quão incríveis são as crianças que pouco conhece. O Capitão e Maria são opostos. Até podes ser como eu, que sempre começa o filme a não gostar dele, mas, em algum momento, percebes como os protagonistas se completam e são perfeitos um para o outro. O desenvolvimento da relação deles é acompanhado pelo desenvolvimento do próprio Capitão, que passa a ser conhecido do público e atrai um considerável carinho pela sua pessoa e princípios. Dentro da armadura de ferro fria e distante está um homem magoado pela perda da esposa, sem saber como lidar com isto e com os filhos. Desorientado pelo facto de estar numa Áustria diferente, em que o poder de Hitler e dos nazis começa a estabelecer-se. Ansioso por ter um motivo de viver.
Num primeiro momento, a Baronesa Schrader – interpretada pela concorrente ao Oscar de melhor atriz coadjuvante Eleanor Parker –, uma rica, poderosa e esbelta viúva da capital, surge como a solução para todos os problemas de Georg. Ela parecia ser a mãe perfeita para as suas crianças e centrada nelas, assim como uma mulher respeitada pela sociedade e uma ótima companheira para preencher o vazio que estava no lugar de esposa. A Baronesa é descrita pelo próprio capitão como a sua “salvação”, pelo facto de lhe ter dado um novo sentido à vida. Contudo, Maria vem trazendo, paralelamente, um sentido ainda melhor de que ele se esquecera: a família. Elsa Schrader até tenta cumprir o papel de mãe para os sete filhos do Capitão, porém, isto não surge para si com a mesma naturalidade que o faz em Maria.
Quando a Baronesa é introduzida na dinâmica familiar, Maria já porta o lugar de mãe sem que Georg perceba isso. Ela nota os sentimentos que todos têm por ela, incluindo o Capitão. O ciúme que é fruto desta constatação leva Elsa a agir de maneira a tirar Maria da casa e do seu caminho, mas nada muito brutal. Ela direciona Maria a perceber que a vida da família poderia estar a ser afetada, uma vez que o Capitão estava a apaixonar-se por ela. Maria, como a pessoa altruísta que é, decide voltar para o convento, mesmo que isso seja contrário à sua felicidade e ao seu desejo de estar com as crianças e com Georg. Nesta parte, os papéis de vilã e de heroína são estabelecidos, numa fórmula um tanto problemática, previsível e datada. Todavia, este cliché cai por terra quando é a própria Baronesa que percebe a falta que Maria faz à família, tomando a decisão sozinha de ir embora, sem mágoas ou rancor.
Das muitas vezes que assisti o filme, em nenhuma consegui desgostar de Elsa. Na verdade, uma das coisas de que mais gosto no filme é de como a representação feminina não é aquela que se esperaria de um filme da década de 60. Como Maria, ela é uma mulher diferente para o seu tempo, ainda que com uma personalidade completamente distinta. O fim da relação dela com Georg é tão pacífico e honesto que é quase impossível não a respeitar. Até mesmo sugere para Georg que se case com Maria pelo facto de combinarem tanto. Ela chega a admitir que precisa de um homem que dependa dela. Alguém que não seja tão independente como o Capitão, em questão de riquezas ou poder, dois atributos em que ele era rico. Assim, os seus caminhos dividem-se respeitosamente, rompendo a expetativa de um drama e de uma desavença entre as duas protagonistas femininas. Com a partida da Baronesa, Georg finalmente se apercebe do seu amor por Maria e pede-a em casamento.
Durante a lua de mel do casal ocorre o Anschluss – a anexação da Áustria ao terceiro Reich – e a presença nazi torna-se sufocante. A corrupção moral que se alastra pelo país fica evidente na personagem de Rolfe, amor de Liesel. O menino contamina-se com a mentalidade ariana de tal forma que passa a desprezar a sua amada ao saber que o seu pai não apoia Hitler. Capitão Von Trapp, porém, mantém-se convicto sobre a sua nacionalidade. As suas opiniões acerca da soberania que o país deveria preservar não são aceites numa Áustria estupefacta com a dominação e o poder de Hitler. Durante todo o filme são revelados pontos sobre o caráter firme de Georg, mas é quando ele nega e rejeita qualquer envolvimento com as forças hitlerianas que o espetador pode ver a intensidade do seu amor pelo país e a profundidade do seu caráter. Ele prefere fugir e renunciar ao seu cargo, ao seu status, à sua honra, às suas riquezas e à sua credibilidade a submeter-se ao poder do Reich. Deixar a Áustria é terrível, mas aceitar o pedido dos nazis de participar na sua marinha é impensável.
Sendo constantemente observada e ameaçada, a família Von Trapp não vê outra opção senão fugir. Esta fuga acontece de uma maneira muito dramática, envolvendo desde traição e espionagem até música. Na verdade, o filme termina de maneira perfeita. O ciclo iniciado com uma noviça em busca de um propósito de vida nas montanhas encerra-se com esta mesma jovem, casada e certa da sua vocação – ser mãe e esposa –, enquanto foge, pelas montanhas, até a Suíça, para preservar algo que sempre lhe fora muito precioso: as suas convicções. O filme valoriza o ambiente bucólico proporcionado pelas lindas montanhas austríacas. A ambientação em Salzburg corrobora a forte relação que as personagens, em especial Maria, mantêm com a natureza. A Maria demonstra por várias vezes como esta é importante na sua perceção do mundo. Assim, faz todo o sentido o facto de a trama começar e terminar nas montanhas, o local onde ela está mais próxima do céu.
Também é interessante notar como a construção da família completa o final. A união e suporte da família que não seria possível no início da história é o que os sustenta na sua fuga. Da mesma forma, a música que foi o caminho para a relação de todos é a maneira de se despedirem da Áustria. Numa época ainda tão marcada pela guerra, o amor saudável pela pátria que a família Von Trapp apresenta era admirável e necessário na época do lançamento da produção. Entretanto, esta camada histórica do filme revela a sua importância ainda atualmente. O filme, para muitos educadores austríacos, surge hoje em dia como uma forma de ensinar os seus alunos e a população sobre o triste papel que a Áustria teve em colaboração com Hitler, algo que não é tão retratado quando se fala acerca da segunda Guerra Mundial.
Para um filme de três horas de duração, efetivamente não acontece tanta coisa, principalmente se compararmos com filmes desta duração, como Vingadores: Endgame, O Padrinho ou Senhor dos Anéis. Contudo, nunca falaria que este filme está aberto para aborrecimento ou desânimo. O foco do roteiro e da montagem claramente não é no quantitativo, mas no qualitativo. Quão profundo se pode desenvolver a transformação numa família através da música. Se não tivéssemos tempo de lidar com o Capitão Von Trapp carrasco, nunca nos apegaríamos à sua versão apaixonante e espirituosa do fim do filme. Se não conhecêssemos a inocente e imatura Liesel e sua paixão infantil, não sentiríamos uma raiva considerável quando Rolfe trai a família da moça por sua causa.
Mesmo com este roteiro completo e complexo, uma das falhas a considerar é a falta de distinção entre as crianças, tão importantes para o desenvolvimento da relação entre Maria e Capitão. É claro que desenvolver num filme com tantos outros elementos as características de todas as sete crianças é uma tarefa complicada, mas existe uma tentativa forçada de formar as suas personalidades através de discursos diretos. As crianças Von Trapp são descritas e encaradas mais como um grupo. Liesel, a filha mais velha, é a única que dispõe de mais tempo de tela e de um arco próprio.
Além de possuir um ritmo diferente daquele a que estamos acostumados hoje em dia, a produção traz também muitas marcas do teatro. Com planos abertos e sequências mais longas, o filme está dividido até mesmo com uma Intermission, algo clássico em produtos de mais longa duração. A trilha sonora de cada cena e o ambiente criado no filme expressa claramente as mudanças de tom ao longo da história, como num teatro. As músicas que colaboram tanto para a excecional ambientação são um espetáculo à parte. Tenho cada uma delas na minha playlist do Spotify, então, novamente, talvez eu seja suspeita por comentar este assunto. Contudo, é indubitável o impacto que elas causam no filme e em cada uma das cenas. As composições não surgem como algo a mais, como pode acontecer em filmes deste género, mas como parte essencial para complementar todo o desenvolvimento da narrativa. Um exemplo disto é o facto de que algumas delas se tiradas de contexto não farão muito sentido e nem serão suficientemente impactantes. A música que eles cantam na apresentação de marionetes, por exemplo, pode não aparentar muita significância, mas demonstra a presença forte da arte na família, a proximidade de Maria e das crianças e a evolução do amor entre a governanta e o pai – pontos essenciais para a trama.
Assim, para preservar este filme aos olhos de muitos, vou pedir a cada leitor que não gosta de musicais que não o assista, uma vez que a música é uma parte tão importante. Eu nunca indico filmes pelos quais sou apaixonada para todos os que conheço – afinal, aquilo que se valoriza divide-se com cuidado. Este é um destes casos. Todos os meus amigos músicos que entendem a beleza das composições, assim como os meus colegas amantes de musicais e cinema são mais que bem-vindos a assisti-lo.
Igualmente, a fotografia destaca-se. Mesmo sendo um musical, acredito que poderia assistir a este filme sem som e ainda aproveitar a experiência. A fotografia é tão bem executada que o facto da filmagem não ser aquela a que estamos acostumados por causa das evoluções tecnológicas, ainda conseguimos reconhecer a sua qualidade. Desde as cenas mais escuras e românticas, com um ótimo jogo de sombras, até às cenas mais mundanas e normais, é tudo muito bem feito. Assistir ao filme de novo fez-me ter vontade de viajar para a Áustria assim que esta pandemia acabar. Este é um dos poucos filmes pelo qual mantive um apreço, além da conexão emocional, desde a minha infância por causa da sua qualidade.
Entretanto, tenho de ser sincera: a minha versão mais velha, habituada a viver e ao cinema do século XXI, esperava uma história um pouco mais real. É importante ressaltar que mantenho um olhar crítico de quem está acostumada a personagens um pouco mais reais e humanas, com problemas dignos dos Óscares nos anos 2000. De nenhuma forma retiro a profundidade das personagens criadas no filme – apenas aponto como elas cabem muito melhor na época em que foram criadas e hoje em dia encaixam-se em padrões que já vimos por toda a vida e em todo o lado. Afinal, clássicos como este acabam por inspirar gerações de cineastas e quantas Marias e Georgs já vimos na história do cinema? Assim, aconselho a qualquer um que o for assistir que mantenha isto em mente.
Tenho a opinião de que um clássico desta magnitude deve ser respeitado, ainda que se encontrem falhas no seu desenvolvimento com o passar dos anos. E o mais interessante é que, mesmo impondo um olhar crítico, não consigo achar muitas coisas que o desvalorizariam. É um filme que envelhece tão bem quanto a própria Julie Andrews.
Artigo redigido por Amanda Silva
Artigo revisto por Miguel Bravo Morais
Fonte da imagem de destaque: Los Angeles Magazine
AUTORIA
A curiosidade e o questionamento são naturais desde que se lembra. Da História até às artes, sempre tomou gosto por se informar e por compartilhar com outros as suas descobertas. Assim, ao mesmo tempo que o conhecimento e a comunicação surgiam como um estilo de vida, os caminhos jornalísticos e pelo mundo da comunicação social se apresentavam como os melhores a se trilhar.