Literatura

Pão de Açúcar: A realidade amarga de que ninguém se lembra

Foi numa viagem ao Porto, mais especificamente na Livraria Lello (aquele monumento que todos elogiam e que veio a ser a maior desilusão de toda a viagem – culpa minha, talvez, que desenvolvo expectativas demasiado altas que acabam por não corresponder à realidade), que comprei o Pão de Açúcar.

Este é bom, muito bom na verdade. Ganhou um Prémio Saramago. Aliás, já só temos dois exemplares!”, disse-me um dos vendedores da loja. Não queria perder o dinheiro do bilhete já que a visita tinha sido um fiasco, pois, caso não saibam, para entrar na Livraria Lello têm de pagar 5€, que descontam no valor de um livro lá existente se decidirem comprar algum. Mas tenham em mente que (quase) todos os livros que lá se encontram à venda são desinteressantíssimos. Ainda assim arrisquei e meio contrariada lá trouxe o livro para casa.

A leitura sempre esteve muito presente na minha vida – talvez por querer imitar, enquanto criança, aquilo que via a minha mãe a fazer, tornando-se depois no maior dos gostos – e embora tenha deixado este hábito durante uma parte da minha adolescência, voltei a implementá-lo há pouco mais de um ano. 

Esta viagem que recomecei, agora como jovem adulta, passou pelos mais famosos romances do booktok e por policiais aclamados pela crítica, mas depois chegou Pão de Açúcar, que não se insere em nenhum dos compartimentos em que dividi a minha estante.  

Escrito por Afonso Reis Cabral, Pão de Açúcar conta-nos a história de Gisberta Salce Júnior – Gi, para os amigos –, uma mulher transexual e emigrante brasileira que foi brutalmente assassinada por um grupo de jovens na cidade do Porto, no dia 22 de fevereiro de 2006. Deste crime já toda a gente tem conhecimento, mas e daquilo e de quem esteve por detrás deste? 

Misturando a ficção e a realidade, acompanhamos o quotidiano de Rafa (nome fictício, creio eu), um dos jovens que cometeu a atrocidade em questão, e da amizade que mantinha com Gisberta – sim, leram bem, amizade – intercalado com memórias da vida de ambos. 

Gisberta Salce Júnior
Fonte: Invictas

“Com amigos desses ninguém precisa de inimigos”, pensam vocês. E em parte até concordo. Mas toda a situação é muito mais rebuscada do que aparenta, e, como sei que provavelmente não vão ler este livro, (eu se calhar também não o teria lido não fosse toda a situação da Livraria Lello) vou aprofundar um bocadinho o assunto.

Ao longo da história são-nos apresentados os intervenientes do homicídio: jovens, entre os 12 e os 17 anos, que vivem num centro de acolhimento. Todos eles abandonados ou retirados às suas famílias. Uns viviam num seio familiar disfuncional, outros simplesmente não tinham recursos monetários suficientes em casa para que lhes fosse permitido continuarem a viver com os seus entes queridos. No fundo, todos eles cresceram com um sentimento de não pertença, rejeição, pouco ou nenhum afeto, sem saberem o que é ter colo, com uma profunda revolta cuja origem não entendiam. 

Esta é uma história sobre a delinquência juvenil, sobre o preconceito e sobre a imaturidade que nos revela o quão retorcida pode ser a mente humana, mas é também uma história sobre amizade, que nos mostra como o medo e a pressão dos pares podem ser um fator decisivo na forma como nos relacionamos com os outros.

Ao pesquisar sobre o acontecimento real ficamos com a ideia de que os agressores são um grupo de jovens desprovidos de empatia e compaixão, meros rufias que fazem o mal por fazer. No entanto, esta narrativa transporta-nos para uma realidade dura, suja, fétida e escura vivida por eles – à qual nós conseguimos chegar bem perto. 

Nada desculpa a atrocidade cometida por aquele grupo de meninos – porque é isso que eles eram – mas, mergulhando um pouco mais fundo na atmosfera, conseguimos compreender a forma cruel como veem o mundo, sentindo as suas dúvidas e medos. Não têm regras nem sentido de orientação e acabam sempre por se reger pela voz do mais forte e ameaçador do grupo. São meninos semiabandonados que vivem sem controlo e, apesar de Rafa dizer que eles sim são verdadeiramente livres, conseguimos perceber o preço dessa liberdade.

O facto de não haver adultos neste livro – os que surgem são figurantes ou Gisberta – dá-nos a provar o caos que pode ser um mundo sem imposição de limites, sem alguém que os oriente, que os acarinhe. Absorvi este livro, mais do que como um retrato do crime cometido em 2006: como uma crítica à ainda tão atual problemática da precariedade no subsistema de ação social e à lacuna que existe no acompanhamento dos jovens neste tipo de situações. Não é um livro fácil de ler e precisei de vários dias de “digestão” para conseguir escrever este texto, mas com certeza vale a pena lê-lo, nem que seja para sairmos um pouco da nossa “bolhinha” de privilégio e para nos lembrarmos de que no mundo não é tudo ou preto ou branco.

Afonso Reis Cabral conseguiu eternizar este hediondo acontecimento, sem o dissociar da problemática na retaguarda: a realidade das classes mais pobres e socialmente excluídas em Portugal.

Fonte da capa: Já Soubeste

Artigo revisto por Beatriz Cardoso

AUTORIA

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Quase ingressou no curso de cinema aquando do início da sua jornada no ensino superior, porém, à última hora, decidiu que afinal queria enveredar pelo mundo do jornalismo. Veio da área dos números, mas após a sua entrada na ESCS Magazine - que tomou como um desafio - descobriu um gosto imenso pela escrita. Agora, enquanto editora da Secção de 7ª Arte, ambiciona proporcionar o conforto que sentiu quando entrou na Magazine a todos aqueles que, tal como ela, são apaixonados por cinema.