White Bear: olho por olho, crime por crime
Victoria acorda em sobressalto. Está sentada numa cadeira, com uma televisão à sua frente que tem um símbolo estranho. Não se lembra de nada e percorre a casa à procura de mais respostas. Não tem sucesso. Encontra uma fotografia de uma menina e guarda-a no bolso, pensando que é sua filha. Mas Victoria não está sozinha. Está a ser observada por dezenas de câmeras.
Um grupo de pessoas está do lado de fora da casa. Filmam-na com os seus telemóveis. Perturbada e confusa, Victoria foge até encontrar Jem, uma das poucas pessoas que não se encontra sob aquele estranho estado de hipnose. As duas juntam-se para tentar acabar com a situação provocada pelo sinal de televisão. Simultaneamente, são perseguidas pelos mirones (as pessoas que filmam) e pelos caçadores (os assassinos). O plano de Jem é chegar à central de eletricidade na região de White Bear (tradução: Urso Branco) e desligar os transmissores, para o mundo voltar à normalidade. Porém, quando estão próximas do final, os assassinos voltam a aparecer.
Desesperada, Victoria consegue roubar uma arma de um dos caçadores. Mas quando dispara não saem balas, saem confetes. Uma parede gira e a personagem é recebida com aplausos de uma audiência desconhecida, sentada num teatro. É empurrada por Jem e pelos assassinos para uma cadeira e é amarrada. A aparente protagonista e heroína é vista como apenas um peão num jogo macabro.
Victoria está longe de ser a heroína desta história. Os atores daquela peça de terror contam à audiência que esta mulher, juntamente com o seu noivo Iain, raptaram uma menina chamada Jemima. Este caso captou a atenção dos media e do público e o peluche da menina tornou-se no símbolo do caso: um urso branco (em inglês: white bear). Esta pista teve um grande contributo na resolução do crime. Descobriu-se que a menina fora assassinada pelo noivo de Victoria, enquanto ela o filmava. Iain suicidou-se na prisão antes do julgamento, e o símbolo que estava tatuado na parte de trás do seu pescoço era o que aparecera nos ecrãs.
A atual vilã está claramente perturbada com esta informação. Permanece amarrada à cadeira, enquanto uma multidão de desconhecidos a insulta. Nesse momento, aparecem os créditos finais do episódio. Ao mesmo tempo, vemos os empregados do Parque de Justiça do Urso Branco prontos para repetir o castigo noutro dia. Entram dezenas de novos visitantes com crianças a acompanhá-los, enquanto Victoria suplica que a matem, antes que lhe apaguem a memória novamente.
Este episódio é sobre a justiça criminal.
Victoria é culpada por não ajudar a criança e por filmar o seu homicídio através do telemóvel. As ações que sofre durante o episódio são iguais às que praticou na menina. O episódio acaba com a repetição diária do tratamento. Isso faz com que se questione sobre quem é pior: ela ou a sociedade? Se a sua memória é apagada diariamente, poderá algum dia aprender a lição? E quanto tempo irá durar este castigo?
O calendário soma 15 dias riscados em Outubro, mas quantos meses ou anos se passaram realmente? Este castigo poderá ser vitalício, pois o seu sofrimento entretém as pessoas que voltam a aparecer como se da Disneyland se tratasse.
Também é questionável se Victoria realmente mudou. Durante o episódio, ela não demonstrou qualquer tipo de remorso ou reação quando pensava em testemunhar um homicídio. Será uma pessoa naturalmente má, mesmo não tendo as suas memórias? Isto traz à tona perguntas levantadas pela psicologia há décadas: uma pessoa pode nascer realmente má ou pode tornar-se devido a algum fator ambiental? Será que Victoria é má ou será o resultado de uma vida que o espetador desconhece ou da relação abusiva que tinha com o seu noivo?
Este castigo pode ter sido um modo que a sociedade arranjou para tornar o caso num exemplo e evitar o sofrimento de outras crianças. Este episódio pode também refletir o debate sobre a pena de morte – se um assassino merece o mesmo destino do ato que cometeu –, mas também sobre o sofrimento enquanto espetáculo e sobre o voyerismo.
A hipnotização pode simbolizar o conceito de multidão que, sucintamente, quer dizer que os indivíduos adotam comportamentos que de outro modo não teriam: os da multidão. Se a multidão encara o Parque de Justiça do Urso Branco como um parque de diversões, por que razão isso seria questionado por outros?
Também se pode referir à cancel culture (tradução: cultura de cancelamento), que é a humilhação ou retirada de apoio de figuras públicas por parte dos fãs, por estas terem tido comportamentos socialmente inaceitáveis. Neste caso, os internautas assistem complacentes a comportamentos horríveis direcionados a essas pessoas, sem sentirem remorsos – porque como a pessoa é culpada, merece esse tratamento.
White Bear é o segundo episódio da segunda temporada da série Black Mirror e cumpre a promessa dos criadores da série de abalar a moral dos espectadores.
Fonte da capa: Medium
Artigo revisto por Daniela Leonardo
AUTORIA
A Matilde sempre sonhou em ser jornalista. Isto depois de ter desistido das suas aspirações de astronauta do jardim de infância, por estar sempre na lua. É apaixonada por histórias independente do formato onde estas estejam. Procurou a ESCS Magazine para contar algumas das suas. É licenciada em Ciências da Comunicação, e atualmente frequenta o mestrado de Jornalismo da ESCS.