“Uma Miúda com Potencial”: A realidade da vingança feminina
Promising Young Woman ou Uma miúda com Potencial é um dos vários filmes cujo lançamento era suposto acontecer em 2020, porém, devido às limitações da pandemia, teve o seu lançamento em streaming este mês. Com as suas críticas de 2020 a serem maioritariamente positivas, a questão levantada pelas audiências era não só se o filme ia corresponder às expetativas, mas se ia valer a pena a espera… De acordo comigo e com muitos outros que tinham este filme no topo dos seus mais antecipados desde o ano passado, posso dizer com certeza que temos um vencedor nas nossas mãos.
A trama segue Cassandra (Carey Mulligan), uma jovem de 30 anos que trabalha num café após desistir da faculdade de medicina abruptamente. Contudo, à noite, Cassie vive uma vida secreta em que se finge embriagada para confrontar homens que tentam aproveitar-se dela. A vida de Cassie sofre uma reviravolta quando começa a envolver-se com Ryan (Bo Burnham), um ex-colega de faculdade que a informa de algo, fazendo com que inicie um plano de vingança com consequências violentas.
Uma miúda com Potencial será, sem qualquer dúvida, um clássico, não só devido à sua qualidade, mas pela sua mensagem. Numa altura marcada por movimentos como o #MeToo, se há um filme perfeito para pôr numa cápsula do tempo para mostrar os problemas sociais e as discussões trazidas por este problema é este. Felizmente, explora todos os temas e todos os cantos mais negros sem medo, ainda que pudessem ter colocado o pé no acelerador com mais confiança.
Mulligan interpreta Cassie perfeitamente: consegue ser intimidante, com um controlo e uma aura dominante que a torna imprevisível e, em vários momentos, assustadora; ao mesmo tempo, especialmente no início da segunda metade do filme, consegue ser suave, calma e vulnerável, criando esta harmonia entre os momentos mais calmos e mais negros da personagem. Não é chocante, por isso, que esteja nas preferidas para ganhar o Óscar de Melhor Atriz, que muitos (entre eles, eu) defendem que já devia ter ganhado com a sua excelente prestação em Uma Educação. Mulligan beneficia, claro, de um guião engraçado e brutal que faz questão de criar na pessoa que vê o filme a empatia que Cassie merece.
Outros membros do elenco fizeram um ótimo trabalho: Burnham mostra o seu potencial, desta vez à frente das câmaras; Jennifer Coolidge surpreende num papel mais calmo; e Laverne Cox capta toda a atenção com o pouco que lhe foi dado, beneficiando de uma ótima química com Mulligan.
Enquanto os momentos satíricos e engraçados são ótimos para ambientar as pessoas mais frágeis aos tópicos difíceis de abordar, Emerald Fennel (realizadora e escritora do filme [e também Camilla Bowles, no The Crown]) faz questão de levar a sério o que o filme quer dizer, criando um mundo adequado para o que quer transmitir e fugindo das expetativas sempre que necessário, para que a frustração da história passe para quem vê este filme – nada ilustra isto melhor do que o final divisivo e brilhante que está a dividir muitos críticos e pessoas, mas que não podia ter encaixado mais perfeitamente no puzzle criado por ela.
É pena, porém, que Fennel não traga essa coragem para muitos momentos da personagem de Cassie. Ainda que não consiga apontar muitas das decisões da personagem como erradas para a história, o cuidado excessivo de lhe dar uma bússola moral deixa um pouco a desejar. Contudo, e acho importante sublinhar, apesar de diminuir a intensidade e de causar alguma insatisfação em quem vê, é uma decisão válida, pois não acho que tenha sido a intenção de Fannel criar a próxima Noiva (Kill Bill), mas, sim, um símbolo. Mesmo assim, quando juntamos isto aos momentos mais parados do filme, achei que Cassie, ironicamente, tinha mais potencial.
Atenção: o texto que se segue contém spoilers sobre o filme!
Bom VS Mau
No caso do filme em questão, a postura moral de Cassie era essencial para os espetadores entenderem o contraste que existe entre o bom desta com o mau do resto das personagens. Vemos isto com o facto de praticamente todas as personagens terem participado ou colaborado na violação de Nina. Ryan estava lá no momento e assistiu, entre muitos; Madison (Alison Brie) culpa-a por estar bêbeda e a Reitora Walker (Connie Britton) quer dar o benefício da dúvida mesmo que depois seja entendido que ela sabe que Nina foi uma vítima e que defendeu Al (Chris Lowell), o violador.
O objetivo do filme não é generalizar que todas as pessoas no mundo são más, mas que existe um enorme sistema em que os predadores são protegidos e as vítimas prejudicadas, e que nele, de uma maneira ou de outra, todos nós participamos ao justificarmos, minimizarmos ou ignorarmos estas situações, ou seja, Fanell cria uma versão hiperbolizada de um mundo em que a vítima nunca ganha e todos nós temos culpa, mesmo que uns mais que outros.
Os atos de vingança de Cassie são inofensivos, separando-a, de certa maneira, do mal do mundo. Ela não faz nada de especial aos nice guys (os homens que acham que, graças ao facto de serem simpáticos e educados, lhes é devido sexo em troca) que se tentam aproveitar dela e apenas assustam tanto Alison como Walker. E mesmo quando nos é subentendido que tinha planos mais violentos, como era o caso com o advogado de defesa do violador de Nina, ela cancela a partir do momento em que percebe que este tem remorsos e vive consumido pela culpa. Quando finalmente só resta Al, isto vem no seguimento da revelação de Ryan, a pessoa que lhe trouxe, de novo, a esperança na Humanidade que não só assistiu como também se riu da violação da sua amiga. Cassie vai entrar na fase final do seu plano, com planos mais violentos e completamente destruída.
Por que Cassie tinha de morrer…
O maior twist do filme vem no final, quando Cassie se mascara de stripper e vai à despedida de solteiro de Al. Após drogar todos os amigos, leva-o para o quarto numa «sessão privada». Amarra-o à cama e revela o seu plano – cravar o nome de Nina na sua barriga, para que ele viva tão assombrado como ela viveu. Contudo, Al solta-se e asfixia Cassie até à morte. Mesmo assim, tendo previsto a possibilidade da sua morte, Cassie avisou a sua localização e escreveu mensagens a Ryan (que para se proteger não revelou a verdade à polícia), que seriam apenas enviadas no dia de casamento de Al.
No final, Al é preso pelo homicídio de Cassie e é subentendido que o vídeo onde mostra a violação de Nina tornar-se-á público, acabando por trazer justiça à história de ambas as mulheres centrais do enredo.
Na minha perspetiva, existem dois grandes motivos pelos quais a morte de Cassie faz sentido. Primeiro, depois de tanto trauma e desilusão, o facto de Ryan, que Cassie vê como a sua possibilidade de felicidade e de normalidade, ter participado na situação toda de Nina mostra que ela nunca conseguirá superar ou lidar com este trauma, ou seja, perdeu qualquer esperança na bondade das pessoas (geralmente falando). Mesmo se tivesse sobrevivido, Cassie não sairia completamente vitoriosa com a sua vida permanentemente arruinada com tudo o que lhe aconteceu. Ou seja, o filme indica que a morte de Cassie é a única maneira de lhe oferecer paz.
Além disso, o facto de a vingança lhe ter custado a vida mostra como muitas vítimas no mundo real têm de sacrificar a sua normalidade e paz em troca da justiça que lhes é devida. E enquanto no filme nós temos a satisfação de ver o «bem» a ganhar, na vida real, muitas vezes, isso não acontece no nosso dia-a-dia.
Cassie não devia ter de morrer
A própria morte de Cassie em si é um bom simbolismo de como, mesmo tendo um plano elaborado e inteligente, a força do homem muitas vezes é mais poderosa e de que é exigido um sacrifício para trazer justiça final. O que penso que este final nos quer dizer é que o facto de Cassie ter de sacrificar a sua vida para ganhar e, ainda maior que isso, de que a morte na sua história era a única maneira de ela encontrar paz mostra o quão corrompido o sistema é quando conta à defesa dos Als do mundo, que encontram sucesso, e as Ninas e Cassies que nem sobrevivem a estas situações.
Esta história é tão relevante que mesmo que tenha recorrido a simbolismos e situações hiperbólicas, a sua mensagem continua a sentir-se honesta e, mais importante, real. Levanta a questão: com quantas mais miúdas com potencial já nos cruzamos? Quantas miúdas são assediadas diariamente e desvalorizadas pelo facto de se oporem? Quantas miúdas já beberam a bebida errada? Quantas mais miúdas acordaram em sítios desconhecidos sem se lembrarem da noite anterior? E, para terminar, quantas dessas miúdas encontraram justiça?
Em suma, mesmo que te tornes nos muitos que ficaram confusos com o seu final ou tom, acredito que a possibilidade de saíres desiludido(a) é baixa. Tão engraçado como frustrante… Uma miúda com Potencial é, provavelmente, o filme mais importante de 2020. Não é perfeito, mas tem todos os ingredientes para se juntar aos grandes: boa direção, bom guião, uma espantosa performance e, acima de tudo, uma mensagem tão atual como intemporal.
Artigo redigido por Bernardo Campos
Artigo revisto por Rita Asseiceiro
Fonte da imagem de destaque: Latinxlens.com
AUTORIA
Natural de Mafra, este estudante de jornalismo ainda não sabe o que quer ou vai fazer mas pode garantir que vai procurar respostas nas artes visuais. Amante de cinema, gostaria de um dia trabalhar em algo relacionado com a área, mas tal como foi dito anteriormente, ainda é uma incógnita… Talvez descubra no próximo filme! Gosta do escapismo e identificação que a arte nos traz, e acredita na importância de contar histórias sobre pessoas, quer seja numa série ou numa reportagem.