Dr Seuss: De clássicos literários para o cinema
Na história da sétima arte, adaptações de obras literárias são extremamente comuns. Mesmo assim, ainda há um dilema neste meio acerca da validade de certas adaptações. Enquanto a comunicação entre as diferentes formas de arte é normal e a intertextualidade é até mesmo apreciada, no cinema ainda existe uma certa resistência a esta prática. Muitos colocam a questão de que filmes adaptados de livros seriam apenas caçadores de dinheiro, porque não se preocupam com a verdadeira essência das obras e querem apenas aproveitar-se do público. Contudo, se este é o problema a seu respeito, já vimos diversos exemplos de adaptações bem sucedidas e bem feitas, desde “Senhor dos Anéis” até “O Padrinho”, em que a essência não se perdeu e se propiciou uma maior visibilidade para o produto inicial, que já era de muita qualidade. Então qual seria o limite das adaptações e será que há livros que não deveriam ser adaptados? Dentro deste dilema podemos citar um dos maiores autores para a Literatura infantil e produtor cinematográfico: Dr. Seuss.
No segundo dia do mês de março de 1904, nascia em Springfield, Massachusetts, Theodore Seuss Geisel, escritor e ilustrador estadunidense que é imensamente conhecido pelas suas obras ricas em vocabulário, jogos de palavras, rimas, críticas sociais, ensinamentos, criaturas e mundos inusitados. Com dezenas de livros publicados em várias línguas, prémios, filmes, séries e best-sellers para a sua conta, Seuss e as suas personagens – como o Gato de Chapéu e Grinch – marcaram a infância de milhares de crianças ao redor do mundo e inspiram autores até hoje.
Theodore iniciou a sua trajetória, após a faculdade, ilustrando para revistas como a Vanity Fair e a Life. Contudo, ainda que o seu trabalho como cartoonista fosse já reconhecido, o seu primeiro livro, And to Think That I Saw It on Mulberry Street (1937), foi rejeitado mais de trinta vezes; porém, quando publicado, recebeu elogios suficientes para abrir caminho para o seu primeiro best-seller: Horton Hatches the Egg (1940). Ambas as histórias possuíam uma série de traços em comum que acabaram por caracterizar o estilo do escritor já no início da sua carreira.
Traduzir o mundo para as crianças
A estrutura, bem infantil e básica, não deve, contudo, confundir os seus livros com todos os outros deste género. Seuss possuía uma sensibilidade única ao ensinar, o que deixava as suas histórias leves e incomparáveis, cativando até mesmo os pais. Fica claro como ele próprio pensava com a criatividade e a simplicidade de uma criança ao escrever, porque as mais complexas questões da Humanidade – desde a proteção do meio ambiente até à Guerra Fria – podem ser encontradas nas suas publicações. Assim, é normal que a criança se sinta envolvida com a história, não só porque a atenção é necessária, tendo em vista as palavras e estruturas frásicas escolhidas, mas também por conta da naturalidade com que os acontecimentos se desenvolvem.
Theodore, inclusive, escreveu e publicou um livro direcionado para o público adulto (The Seven Lady Godivas, 1939), mas este não foi bem avaliado, o que levou o autor a decidir-se pelos caminhos da Literatura infantil. Ele chegou a considerar uma vez, em entrevista, que os adultos seriam “crianças obsoletas” por conta da sua falta de imaginação e de esperança acerca do mundo e das situações. Ele acreditava veementemente no potencial das crianças. Confiava nas gerações mais novas de tamanha forma que uma das suas marcas principais era a de não deixar a moral da história muito explícita, pois, de acordo com ele, qualquer criança irá ignorar ensinamentos diretamente intencionados. Desta forma, as crianças absorviam estas questões em meio ao entretenimento, tornando os seus livros ainda mais admiráveis.
Um dos grandes exemplos da visão de Theodore acerca do que deveria ser passado para as crianças é o seu livro e filme curto “The Butter Battle Book”. A narrativa é uma alegoria à controversa corrida militar travada entre os Estados Unidos e a União Soviética durante algumas décadas do século XX. Nesta obra, Seuss faz algo ousado e até inimaginável para alguns: explica a Guerra Fria e, ao mesmo tempo, critica-a numa linguagem infantil. E, como se isto não fosse incrível o suficiente, a produção oferece, de igual forma, sátiras acerca do nacionalismo, do militarismo e da escalada da violência. O autor é tão real com os factos e com o seu público, mesmo sendo este composto por crianças, que não inclui um final feliz na sua história. Esta ousadia com um tema tão complexo acabou por levar ao banimento do livro numa série de livrarias até hoje, o que talvez não seria o esperado para um livro infantil. Este é o tipo de impacto que as obras de Seuss deveriam causar.
Em 1984, Theodore ganhou um prémio Pulitzer especial por todo o seu contributo durante a metade de um século para a educação e entretenimento infantil e estima-se que já tenham sido vendidas 600 milhões de cópias dos seus livros até ao início da década passada.
Quando a quinta e a sétima artes se encontram
Com o início da Segunda Guerra Mundial, Seuss, que era um homem muito envolvido em política e em questões sociais, começou a desenvolver roteiros e a produzir filmes, curtas e documentários que não eram direcionados para o mundo infantil, mas para as temáticas controversas que alastravam pelo mundo. Em conjunto com a sua esposa, Helen Palmer Geisel chegou a ganhar um Oscar pelo documentário “Design For Death”, em 1947.
Contudo, querendo voltar para as ilustrações e para o género que tanto amava, Theodore uniu a sua paixão pelo cinema aos trabalhos literários que já produzia e passou a dirigir e a animar uma série de filmes curtos baseados nas suas histórias para a televisão. Estes trabalhos, além de renderem uma ótima audiência, conquistaram alguns Emmys ao longo dos anos. O seu cartoon animado Gerald McBoing-Boing também foi premiado com um Oscar em 1950, mas são as produções feitas para a televisão ao longo da segunda metade do último século que expressam o estilo de Dr. Seuss, por serem baseadas nos seus livros.
Vemos, então, que o encontro da quinta e da sétima arte, neste caso, não foi controverso ou desagradável. Todavia, o oposto aconteceu nas adaptações para o cinema já no século XXI, quando o autor já estava morto e não chegou a participar dos bastidores. Poderíamos justificar o sucesso das primeiras produções com o facto de o próprio autor se ter envolvido, mas isso não é o que torna num filme – separadamente do livro – bom.
A primeira diferença entre os filmes feitos no século passado e aqueles a que assistimos nos cinemas hoje em dia é a duração. Enquanto os primeiros possuíam, no máximo, 30 minutos, as produções Hollywoodianas têm o triplo do tempo. Este fator parece simples, mas acaba por afetar todo o ritmo da obra. Quando os livros foram para a televisão, uma das maiores preocupações de Seuss era que as crianças conseguissem manter a atenção e assistir. Ele desejava continuar com a mesma simplicidade dos livros, por isso, não modificou as histórias, as personagens e o enredo. Para se ter uma noção, até mesmo as rimas foram mantidas nestas curtas, exatamente porque o autor sabia a importância delas na comunicação infantil. Há um respeito latente pelos livros e pela sua forma de expressão.
Nas adaptações mais recentes, esta preservação da história inicial é quase inexistente. De maneira a alongar a produção, juntou-se uma série de personagens e de eventos, o que não seria um problema se a execução dos roteiros, agora sem o auxílio do próprio autor, tivesse sido bem executada. “O Gato de Chapéu” e o “Grinch” – a versão de 2000 – encaixam-se nesta categoria de ideias mal executadas, empobrecendo uma narrativa rica e educativa. Entretanto, eu não penso que este seja o problema nos casos de “Lorax”, “Horton e o Mundo dos Quem” e o mais recente “Grinch”. Estes três filmes sofreram de falhas um pouco mais profundas do que erros de roteiro. A olho nu – para aqueles que não são amantes devotos às obras de Seuss –, estas são obras medianas e até mesmo aceitáveis, o que não acontece nos dois exemplos anteriores.
Estas três adaptações mais recentes sofreram daquilo a que chamarei perda da essência, do espírito por detrás do génio que foi Theodore Geisel. Numa tentativa de as tornar mais condizentes com aquilo a que o público atual está acostumado, mais distrações foram incluídas e a parte mais importante – a moral das histórias – tornou-se no segundo plano na nova estrutura Hollywoodiana. O mais importante nestes filmes, agora, é a aventura, as novidades, enquanto Geisel utilizava estes dois elementos para atrair e levar a criança a um ponto de reflexão.
Utilizemos, num primeiro momento, o exemplo de “Horton e o Mundo dos Quem”: a moral da história que deveria ser acerca dos privilégios da maioria, da crença no invisível e da valorização da criança torna-se numa luta entre o bem, que quer proteger um mundo que não conhece, e o mal, que é apenas implicante e ignorante. Uma narrativa profunda perde-se na forma de bolo que já conhecemos e as camadas apenas os pais irão, talvez, entender. Note que eu não digo que o filme é mau, apenas mediano quando comparado ao clássico que o livro é.
O caso do “Lorax” não foge muito a esta linha de raciocínio. Isto porque a história retratada não foi feita para crianças. Foram acrescentadas críticas à sociedade capitalista e à alienação e eu poderia até mesmo comparar algumas das mudanças no roteiro a que assistimos em “Matrix”, uma vez que falamos de um mundo destruído, mas no qual a sociedade acredita viver em plena felicidade. A cidade de Thneedville apresentada no filme que, para os adultos, claramente é desigual, injusta e assustadora, parece uma espécie de utopia aos olhos infantis. Ela é uma representação do nosso mundo: preso ao interminável ciclo de consumo, produção e exploração. Por mais controverso que isso possa parecer, todas as propostas novas que surgem no filme do “Lorax” talvez devessem ter sido guardadas para transformar o filme numa série, porque há uma complexidade de informações que nenhuma criança compreenderia rapidamente e as crianças são o verdadeiro público, se falamos das obras de Seuss.
Um problema de identidade
A comunicação mais adulta numa animação não é uma falha. Vemos, repetidamente, como a Pixar e os estúdios Ghibli impressionam nesta área, mas se a proposta inicial é ser um filme unicamente infantil, então que permaneça com este propósito. Os mundos inventados por Geisel atraem extremamente a mente infantil. Eles não fazem sentido e são uma bagunça e esta é a beleza. Estes filmes têm, na verdade, um problema de personalidade. A profundidade é adulta, mas a criatividade é infantil. O público que busca o filme é composto por crianças, mas elas não conseguem entender plenamente o que o filme, diferente do livro que leem na escola, quer dizer. Os cinéfilos esperam as rimas e diversão que experienciaram na infância, mas recebem algo mais próximo de uma tese. Em suma, na minha opinião, o que tem dificultado o caminho das últimas adaptações de Dr. Seuss é o facto de tentarem exceder os limites do que era suposto ser feito. Eu acredito veementemente que, se “Lorax” e “Horton e o Mundo dos Quem” fossem apenas inspirados na história original, não adaptações diretas, teriam sido recebidos de braços abertos, porque são filmes aceitáveis, com potencial de se tornarem incríveis.
Assim, encontramos uma prova de que nem todo o grande livro consegue tornar-se num grande filme. As ideias podem até ser excepcionais, mas o público que se opta por atingir quando se faz uma adaptação nem sempre fica satisfeito com o que foi feito. E, é claro, os fãs nunca estarão plenamente satisfeitos. Realizar adaptações é um trabalho difícil, mas às vezes é muito mais ousado fazer um filme do zero, sem fãs a aguardar ou bilheteira garantida, para produzir um ótimo e aclamado produto final.
Tenho de concluir este artigo afirmando que foi extremamente difícil escrever sobre este tema. Eu sou uma fã quase cega de tudo aquilo que é inspirado no incrível trabalho de Theodore Seuss e avaliar criticamente os filmes que formaram a minha infância foi uma experiência terrível. Entretanto, o meu espírito infantil continuará a revisitar estes trabalhos – principalmente os filmes pelos quais tenho muito carinho – e eles serão para sempre os meus guilty pleasures.
Artigo redigido por Amanda Silva
Artigo revisto por Miguel Bravo Morais
Fonte da imagem de destaque: Britannica
AUTORIA
A curiosidade e o questionamento são naturais desde que se lembra. Da História até às artes, sempre tomou gosto por se informar e por compartilhar com outros as suas descobertas. Assim, ao mesmo tempo que o conhecimento e a comunicação surgiam como um estilo de vida, os caminhos jornalísticos e pelo mundo da comunicação social se apresentavam como os melhores a se trilhar.