Escravos digitais
Tédio. Todos nós nos encontramos numa constante fuga do aborrecimento. Seja a ler um livro, a jogar, nas compras, a trocar mensagens ou nas redes sociais. É quase paradoxal: numa sociedade com cada vez mais acesso à informação e a tarefas de lazer, o tédio parece estar sempre ao virar da esquina.
A literatura científica possui a difícil missão de se fazer entender, descomplicando os conceitos e nomenclaturas compreendidas por poucos. Este papel tem-se tornado cada vez mais relevante, na medida em que, tendencialmente, os possíveis leitores têm-se refugiado nas suas bolhas digitais, longe das páginas.
A psiquiatra Dra. Anna Lembke, autora do livro Nação Dopamina, explora diversos temas atuais que nos fazem questionar certos hábitos, costumes e vícios do ser humano.
“O smartphone é a agulha hipodérmica dos tempos modernos, fornecendo incessantemente dopamina digital para uma geração plugada”, explica.
Anna Lembke em Nação dopamina: por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar (Editora Vestígio, 2022, p.12)
Mas, afinal, o que quer isto dizer? De que forma é que os nossos telemóveis são responsáveis pela produção da dopamina no nosso cérebro?
A descoberta da dopamina ocorreu em 1957. Tornou-se possível detetar que o cérebro humano processa as sensações do prazer e o sofrimento no mesmo lugar, agindo como uma balança.
“Todos nós vivenciamos aquele momento de desejar mais um pedaço de chocolate, ou de querer que um bom livro, um bom filme ou videogame durasse para sempre. Esse momento de desejo é a balança do prazer do cérebro inclinada para o lado do sofrimento.”
Anna Lembke em Nação dopamina: por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar (Editora Vestígio, 2022, p.13)
Retornando à metáfora da balança, imaginemos que a mesma está nivelada. Neste caso, o cérebro encontra-se no estado de equilíbrio.
Quando sentimos prazer, a dopamina é libertada e a balança inclina-se para o lado do prazer. Quanto maior é a inclinação, mais prazer sentimos. No entanto, sempre que a balança pende para o lado do prazer, mecanismos autorreguladores são ativados para nivelá-la.
Ao retornar ao ponto inicial, a balança começa a inclinar-se numa força igual e oposta para o lado do sofrimento, levando o indivíduo a procurar a mesma fonte de prazer persistentemente.
Desde o começo da história que o ser humano tem aprimorado as suas invenções para que se tornem mais rápidas e eficazes. O mundo tecnológico de hoje coloca à disposição um vasto leque de drogas digitais, que ganharam um meio de disseminação cada vez mais rápido graças à internet. Poderá o fenómeno da leitura de obras em papel estar ameaçado por esta constante evolução? O fácil acesso a conteúdo recompensador, contínuo e limitado que a tecnologia, com o seu aparato luminoso e sonoro, proporciona, torna-a viciante. Os estímulos causados pela simples leitura de um livro são diferentes: não existem tantos estímulos, sendo o leitor obrigado a dar asas à sua imaginação, criando as suas próprias imagens e sons. Cada leitura torna-se única, sendo possível criar inúmeros cenários distintos, ao contrário do que acontece com o conteúdo visto na internet.
Ao longo da obra a psiquiatra narra alguns casos de vício que chegaram ao seu consultório, passando por dependência de droga, de remédios, de conteúdo online, de álcool ou de masturbação, com o objetivo de mostrar que existem vários tipos de possíveis drogas por toda a parte, e que ninguém está a salvo.
“No atual ecossistema rico em dopamina, todos nós nos tornamos prontos para uma gratificação imediata. Queremos comprar alguma coisa, e no dia seguinte ela aparece à nossa porta. Queremos saber alguma coisa, e no segundo seguinte a resposta aparece na nossa tela. Estamos perdendo a habilidade de descobrir coisas, ficando frustrados enquanto buscamos a resposta ou temos que esperar pelas coisas que queremos?”
Anna Lembke em Nação dopamina: por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar (Editora Vestígio, 2022, p.98)
Apesar de todo o conhecimento que já se possui, a verdade é que a dependência é cada vez mais um fenómeno pandémico mascarado de smartphone, conteúdos pornográficos, timelines infinitas, etc. No entanto, mesmo consciente do que o rodeia, o ser humano procura minimizar o problema, pois, ao final do dia, é mais conveniente conformar-se com a realidade e passar horas “ligado à corrente”, para evitar o famigerado tédio. Ler um livro exige paciência: horas, dias, semanas de dedicação para conhecer a obra, independentemente do tipo. Para algumas pessoas pode ser um exemplo de tédio, não tendo estímulos suficientes para se tornar algo tão viciante, mas por vezes o tédio pode ser necessário. Ler exige concentração, ao contrário das redes sociais, mas é também uma porta para o conhecimento e para a criatividade, sendo possível criar mundos paralelos. Qualquer pessoa pode viajar mentalmente e conhecer-se pegando apenas num livro, mas, como diz a autora:
“(…) fazemos praticamente qualquer coisa para nos distrair de nós mesmos. No entanto, parece que toda essa tentativa de nos isolarmos do sofrimento apenas torna nosso sofrimento pior. (…) A pergunta é: Porque é que, numa época sem precedentes de prosperidade, liberdade, progresso tecnológico e avanço médico, parecemos estar mais infelizes e com mais dores do que nunca?”
Anna Lembke em Nação dopamina: por que o excesso de prazer está nos deixando infelizes e o que podemos fazer para mudar (Editora Vestígio, 2022, pp. 45-47)
Imagem de capa: Unsplash
Artigo revisto por Beatriz Cardoso
AUTORIA
Um misto de curiosidade, de muito trabalho e determinação é o de que é feito Tomás Delfim. Gosta de desporto, ciência e, principalmente, de se comunicar e fazer ouvir. A falta da sua visão nunca foi um obstáculo no seu caminho, o que apenas o tornou mais determinado.
Parabéns. Gostei muito.