Media

“GOSSIP GIRL” – SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS RICOS

Acreditem ou não, estamos a um ano do aniversário de dez anos do último episódio de “Gossip Girl”, e, com um reboot a caminho, a série voltou às esferas de interesse de um público que tinha de se entreter com alguma coisa enquanto estava fechado em casa. Apesar da sua reputação questionável na altura, atualmente muitos consideram a série uma das melhores do seu género e – acreditemos ou não – adolescentes ricos a viverem vidas interessantes é um género em si.

É por isso que me deixa um pouco frustrado quando ouço pessoas a dizer que “Gossip Girl” é boa para passar o tempo, mas que não tem muito conteúdo que possa enriquecer aqueles que a veem. E, enquanto isto possa ser dito sobre as últimas temporadas, não é de todo aplicável à primeira e, na minha opinião, melhor temporada do programa.

Devido ao que foi dito, focar-me-ei em explicar o porquê de achar que a primeira temporada é o exemplo perfeito de como fazer teen tv e como por trás do guarda-roupa extravagante e cenários estéticos de Nova Iorque temos um olhar bastante informador e interessante do que é crescer no mundo intimidante de Upper East Side e a corrupção física e mental que o poder e dinheiro têm na vida de uma pessoa.

Território sem spoilers

Sinopse

A primeira temporada começa com o regresso da misteriosa Serena Van Der Woodsen a Nova Iorque e o seu efeito disruptor no mundo social do Upper East Side, a zona elite de Manhattan. Para além de corrigir a dinâmica com a sua família e a rancorosa e vingativa melhor-amiga Blair Waldorf, Serena terá de se reintegrar na vida que deixou para trás. Tudo isto enquanto lida com os efeitos destrutivos do site de rumores, Gossip Girl, que torna público tudo o que ela e os seus amigos fazem (ou fizeram…).

Da esquerda para a direita: Blair (Leighton Meester), Jenny (Taylor Momsen), Serena (Blake Lively), Dan (Penn Bagdley), Nate (Chace Crawford) e Chuck (Ed Westwhick). Fonte: Host Geek

Ao longo desta temporada, seguimos a vida luxuosa e privilegiada desta elite de adolescentes, assim como as guerras silenciosas que estão sempre a acontecer atrás das câmaras de lentes rosa e os escândalos que delas surgem.

Spoilers

Com este artigo não digo que “Gossip Girl” pertença ao patamar de séries como “Os Sopranos ou “Breaking Bad”, mas que, para o que é e tenta ser, é praticamente perfeita. Temos toda a loucura e exagero que esperamos de uma série destas, mas elevada com personagens complexas, histórias com conteúdo e atuações fortes.

Fonte: Glamour

Vemos o glamoroso da vida com milhões, como encontramos conforto no facto de não termos aquele estilo de vida que poderia facilmente destruir os nossos valores e traços pessoais.

Para além disso, superficialmente, “Gossip Girl” está repleta de iconografia, não só porque representa Nova Iorque tanto como um paraíso, como um pesadelo quando adequado, mas também pelo seu uso de estilo para construção de personagens e narrativas.

O guarda-roupa de “Gossip Girl” merece a sua própria análise profunda, sendo que é um dos melhores exemplos de como a caracterização de personagens nos pode contar tanto sobre elas, como o seu diálogo e ações. Ainda que nem sempre mostrem o melhor dos anos 2000’s/2010’s, o estilo até hoje é dos mais marcantes da televisão e muitos entregam à série a responsabilidade da popularização do estilo preppy (basicamente, estudante de colégio privado), que até hoje é uma estética imitada e adorada.

Fonte: Planet Claire Quotes

Conseguimos ver o espírito livre e espontâneo de Serena pela sua roupa, assim como a rigidez e necessidade de controlo nas peças de Blair e ninguém tem tempo suficiente para analisar as 30 fases de Jenny. O importante aqui é que não é só graças aos seus enredos que o programa mantém a sua relevância, mas a sua estética que até hoje é mencionada, adorada e acima de tudo, recriada.

Mas, para perceber o porquê de esta primeira temporada estar tão bem construída, é preciso perceber o que ela tenta dizer.

COMER OU SER COMIDO

Esta temporada inicia a viagem de uma maneira perfeita. Não só estabelecemos o enredo da personagem de Serena e o consequente puzzle que teremos de completar para perceber o porquê da sua fuga e regresso, como estabelecemos Gossip Girl como o nosso narrador. Para além disso, arranjamos dois proxys com duas perspetivas para entrarmos no mundo do Upper East Side: Serena, claro, mas também Dan Humphrey, que mostra como é que alguém de status mais baixo é recebido pelas elites.

Fonte: Word Press

Somos também introduzidos à mais interessante personagem da série, Blair Waldorf, que ilustra o lado intrigante, cruel e inteligente do Upper East Side. A série não demora até a mostrar em ação com diversos esquemas de vingança e chantagem.

Ao início, somos bastante guiados pela perspetiva de Dan, uma visão bastante arrogante e pouco compreensiva deste mundo, em que só vemos snobs gananciosos a atacarem-se uns aos outros e a arruinarem vidas sem razão. Ainda que esta visão não esteja errada, Dan falha ao achar que que não existe uma relação causa-efeito neste tipo de comportamentos, quase como um modo de sobrevivência que é ativado por este estilo de vida.

Fonte: Marie France

Dan não é a única personagem “modesta” que entra neste mundo, mas é das poucas – ignoremos o final – que não é completamente corrompida pelo mesmo, apenas porque se separa dele. A viagem pessoal da sua irmã, Jenny, por outro lado, mostra que muitas das coisas más que alguém faz ao subir a escada social têm de ser feitas para comer ao invés de ser comido, da mesma maneira que um negócio tem de fazer coisas pouco éticas para ultrapassar os outros que não tem qualquer limite moral.

O facto de a série escolher para além do uso saudável de clichés de novela e ter esta segunda camada de observação do mundo que cria, torna-a bastante mais dinâmica e interessante e soa um pouco injusto que estes dois lados não possam coexistir, mesmo que muitos escolham lembrar “Gossip Girl” pelo seu lado superficial.

UMA GRUTA DE DIAMANTES

A verdade é que para além dos romances, traições e escândalos, a primeira temporada tem imensos enredos que trazem profundidade à história. Temos Nate Archibald, que perde todo o seu dinheiro quando se descobrem as ações criminosas do seu pai e que ilustra a fragilidade do dinheiro e falsidade das elites; Jenny, que tenta subir socialmente sem metade dos privilégios, custe o que custar, e que mostra como este mundo exige que sacrifiquemos parte de quem somos para nele entrarmos; Dan, que tenta equilibrar o seu amor por Serena pelo seu ódio do seu estilo de vida e como não consegue aceitar e distinguir o mundo de quem nele habita; Vanessa, que surge como uma antítese às outras personagens por se recusar a satisfazer os requisitos esperados dela dos de Upper East Side; Chuck Bass, que tem um reviravolta pessoal quando se apaixona por Blair e tenta que o seu lado sentimental e vulnerável coabite com a frieza que lhe é esperada para suceder na vida; Blair, que luta por manter o poder e provar o seu valor no mundo, enquanto lida com os demónios e inseguranças, tal como Chuck com os seus sentimentos.

Fonte: We Heart It

E, por fim, temos Serena, que, para além de ter de regressar e de se adaptar ao mundo social de Upper East Side, enquanto namora com alguém que a odeia, tenta aceitar e perdoar o seu passado, que inclui o que ela achou se tratar de um homicídio. Para além de a sua história ter claramente o maior impacto dramático, mostra melhor o impacto destrutivo e traumático desta vida. Mostra como uma vida de poder pode coexistir com irresponsabilidade com uma adolescente e os efeitos explosivos que daí podem surgir.

O PARADOXO DE BLAIR WALDORF

Fonte: Buzzfeed

Tal como disse anteriormente, a Blair é a minha personagem preferida da série. Ao contrário de outras que são fáceis de adorar como Nate ou Serena, acabamos por nos apaixonar quando entendemos e analisamos todas as suas camadas.

Apesar de o aparentar, Blair não adora este mundo, até porque foi das que mais sentiu a sua negatividade e toxicidade. Muitos dos seus desafios devem-se às consequências do seu estilo de vida: falta de atenção por parte dos pais, distúrbios alimentares e complexos de abandono. No seu caso, entende este mundo tão bem que apenas navega e destrói antes de ser destruída. Sendo que foi criada neste ambiente, simplesmente aprendeu a jogar as cartas certas e é difícil culpá-la por isso. Ninguém entende melhor os privilégios que o dinheiro traz, assim como te transforma em alvo que te põe nas costas.

A relação desta com a Serena, por muito complicada e anormal que seja, não foge, de todo, ao sentido. O rancor e inveja de Blair, que foi abandonada pelo pai e a melhor-amiga (que também dormiu com o namorado), são das maiores forças na dinâmica desta amizade e, ainda que nem sempre seja consistente, é bastante superior às típicas de outras séries do género, uma vez que é elevada pelas performances de Leighton Meester e Blake Lively.

De certa maneira, Blair representa a dualidade deste mundo que tanto nos traz poder como nos faz frágeis. E, por muito difícil que seja lidar com tudo, muitas vezes é impossível sair dele e a única maneira de suceder é estar sempre pronto para os seus desafios.

Fonte: Fanpop

O romance entre Blair e Chuck acaba, por isso, por surgir como um par perfeito que se une pelos defeitos e os dois têm em comum uma visão tóxica deste mundo. Enquanto Blair sabe jogar, Chuck está destinado a ser dono do casino. É um exemplo de alguém cujo sucesso e futuro são construídos no sistema que torna o mundo do Upper East Side tão cruel e aproveitador… Alguém que é forçado a corromper-se em nome de legado e status.     

O QUE APRENDEMOS

Gossip Girl” abre as portas a um mundo que muitos invejam, mas também critica e defende quem nele habita e desmistifica o seu glamour – tudo isso em Louboutins. É um olhar sobre a dualidade do dinheiro, status e o preço a pagar se realmente estes são algo que queremos nas nossas vidas.

Ainda que tenham acabado por perder muita da sua profundidade e do seu impacto em temporadas posteriores, não se pode negar que não deixa de ser uma tour divertida e estilosa deste mundo e certamente merecedora da posição que ocupa na cultura pop atual. As personagens são, na sua grande parte, interessantes e “simpatéticas”, os cenários são lindos, o guarda-roupa é icónico e a história não tem medo de puxar os limites da realidade em nome de um bom episódio.

Fonte: Itl.cat

Acima de tudo, esta primeira temporada é um olhar sobre a corrupção que este estilo traz à vida de uma pessoa, a maneira como os peixes neste aquário se comem uns outros, agarram e sugam aquilo de que precisam para suceder, traem quando necessário e como podemos sair prejudicados pela nossa ambição.

Artigo revisto por Maria Ponce Madeira

Fonte da foto de capa: Prime Video

AUTORIA

+ artigos

Natural de Mafra, este estudante de jornalismo ainda não sabe o que quer ou vai fazer mas pode garantir que vai procurar respostas nas artes visuais. Amante de cinema, gostaria de um dia trabalhar em algo relacionado com a área, mas tal como foi dito anteriormente, ainda é uma incógnita… Talvez descubra no próximo filme! Gosta do escapismo e identificação que a arte nos traz, e acredita na importância de contar histórias sobre pessoas, quer seja numa série ou numa reportagem.