The Queen’s Gambit: Como construir um final (quase) perfeito!
O “Gambito de Dama” é uma série limitada da Netflix, baseada numa obra com o mesmo nome, da autoria de Walter Travis. A trama acompanha uma brilhante jovem, Elizabeth Harmon, na sua viagem para se tornar a melhor jogadora de xadrez do mundo. Ao longo desta jornada assistimos à sua luta contra os seus demónios e à forma como lida com novos vícios, como as drogas e o álcool, que destroem progressivamente as suas relações com os que a rodeiam e até consigo mesma.
Esta série é uma das melhores ofertas do serviço de streaming. Está bem escrita, visualmente cativante e confere, possivelmente, a melhor performance de uma atriz numa produção televisiva deste ano, por Anya Taylor Joy. O “Gambito de Dama” é um sucesso em todos os aspetos, sendo que tem sido excecionalmente recebida por parte de críticos e batido recordes na Netflix, ao ser vista por mais de 60 milhões de casas no seu primeiro mês.
Neste artigo, o foco será no seu excelente final, na forma como esta história foi tão perfeitamente criada, ao ponto de o seu final se tornar impossível de prever, e em como Beth assumiu várias posições na conclusão da história de uma das mais interessantes personagens da televisão atual.
Alerta: Spoilers! Se ainda não viste a série (devias!), lê a teu risco!!
Onde estamos e onde iremos…
A chegada de Jolene, no sétimo episódio, pode parecer aleatória. Porém, tendo em conta o ponto da narrativa em que Beth se encontra, faz sentido. Atingindo o seu pico mais baixo no episódio anterior, Beth perde-se nos seus vícios e na sua dependência. Com todas as possibilidades esgotadas, é normal que o telespetador questione quem poderá puxar Beth deste buraco psicológico… aqui entra Jolene.
Jolene surge não só como a primeira amiga de Beth, mas também como representação do seu passado – um pedaço da sua infância que a força a refletir sobre quem era e sobre quem é e, consequentemente, a desafia a enfrentar todos os seus demónios. Se não fosse Jolene, Beth não voltaria a visitar o seu orfanato, nem saberia da morte do Sr. Shaibel: o contínuo do orfanato e quem despertou em si o interesse pelo xadrez. A morte deste é um ponto de reviravolta para Beth. Isto é, ao descobrir que o seu mestre acompanhou a sua carreira, à distância, tendo falecido sem nunca receber os seus louros, permite-lhe que finalmente entenda que não é a única pessoa influenciada pelo seu sucesso. Ainda a faz perceber que, ao reduzir a sua carreira a si própria, pessoas como o Sr. Shaibel nunca saberão o seu impacto e importância.
Esta visita ao orfanato faz com que Beth também reconheça que já não é a órfã do passado. A sua necessidade de controlo que a permitia lidar com a realidade já não existe. Ela tem liberdade, uma identidade e, ainda mais importante, pessoas que se importam consigo. Este é o momento em que ativam o ato final da história: Beth será forçada a questionar a visão individualista e solitária da vida. Assim, perceberá finalmente que negar a ajuda ou o amor dos outros não é uma consequência do seu génio, mas uma escolha. Para além disso, tal como veremos mais tarde, esta negação traduz-se num entrave ao seu total potencial.
Mais um génio solitário?
A trupe do génio solitário não é, de todo, uma novidade. Porém, a abordagem positiva que este programa adota é bastante refrescante. As abordagens clássicas deste tipo de personagem podem ser vistas em diversas personagens. Sherlock Holmes é o mais perfeito exemplo de génio. Contudo, personagens como Nina em “Cisne Negro” ou como Andrew em “Whiplash”, ainda que não sejam exemplos comuns de genialidade, acabam por servir como equivalentes a Beth, no sentido em que estes “génios” não são produto do seu intelecto, mas da obsessão pelas suas artes.
Normalmente, estas personagens são marcadas pela sua inteligência acima da média, talento, solidão e dependência em inibidores. A sua inteligência traz muitas bênçãos à sociedade ou o seu talento traz muita glória e fama na área que praticam. Porém, vivem com o custo de não se conseguirem identificar com ninguém e com uma incapacidade de encontrarem a satisfação pessoal ou alguém que consiga acompanhar os seus dotes. Na eventualidade de conseguirem, serão apenas personagens que representam um apoio emocional para auxiliar e aplaudir, sem nunca serem focos centrais ou apresentados ao mesmo nível.
A história destas personagens acaba sempre de duas maneiras: a sua obsessão leva-as à loucura, o que termina muitas vezes em fatalidades; ou então atingem a mais cobiçada glória no seu ofício, sem qualquer pista acerca do futuro da personagem. Beth foge a estes finais, o que foi a escolha acertada.
Até ao último episódio, a trajetória de Beth é a clássica história sobre a loucura e o talento que andam de mãos dadas, a par da incompreensão por parte do mundo envolvente, recorrendo às drogas e ao álcool para lidar com a realidade.
Contudo, isto tudo muda no último episódio, onde é fortemente subentendido que as drogas não são uma consequência do seu génio, mas um impedimento ao seu total potencial. Para além disso, as pessoas não só a aplaudem, como acabam por ser uma peça essencial na sua vitória.
Com a chegada de Townes, o único homem que Beth amou, é novamente defendido que o isolamento e a solidão não têm de ser um fator da genialidade. Isto é, as pessoas que a acompanham não são apenas os seus fãs. Quando Beth se está a preparar para o seu último jogo, contra Borgov, é graças ao auxílio de todos aqueles com quem ela se cruzou, ao longo da trama, que consegue finalmente vencer. Isto não invalida a sua inteligência ou talento – apenas mostra que as pessoas à nossa volta não servem exclusivamente para aplaudir as nossas vitórias ou para nos darem o ombro quando perdemos. Servem também para nos auxiliarem a atingir os nossos objetivos, através dos seus dotes e talentos pessoais. Esta mensagem anti-individualista da série é uma das suas teses mais profundas, mas não é a única. No final do dia… a Dama não é a única peça num tabuleiro de xadrez.
Mesmo se perdesse, Beth ganhava: um dos fatores que torna este final tão intrigante é o facto de a narrativa estar tão imaculadamente construída, ao ponto de, no jogo final, tanto uma vitória como uma derrota ofereciam uma conclusão lógica à história de Beth. Analisemos:
– Tal como na série, Beth ganha: neste cenário, Beth atinge o seu objetivo, não só porque luta para conseguir o máximo de domínio do xadrez, mas também porque finalmente se deixa ser ajudada e aprende a trabalhar em equipa. Conclui-se que, através da aceitação de terceiros na sua vida, finalmente atingiu os seus objetivos. A sua vitória vai para além do tabuleiro, uma vez que é entendido que é uma lição que continuará a conduzir a sua vida.
Esta opção é extremamente positiva para quem vê o programa, pois não só vemos os frutos de toda a luta de Beth, como temos uma garantia de que ela nunca vai estar sozinha. Por outro lado, isto invalida muitas das ideias apresentadas ao longo do programa: o que acontece depois de se atingir o pico tão cedo? Será que Beth percebe que há mais na vida do que o sucesso no xadrez?
A última cena de todas oferece-nos uma possível resposta, se bem que insatisfatória, na minha opinião, ao colocá-la a jogar com um jogador comum na rua, mostrando que ela não perdeu a paixão pelo xadrez. Contudo, todo este final levanta questões em relação à satisfação laboral que Beth terá no futuro. É aqui que um segundo final teria vantagens.
Imaginemos, agora, que Beth perde: Apesar de este final parecer mais frustrante, faz imenso sentido. Ao longo da trama, é-nos questionado se a vitória tão prematura de Beth será, de certa forma, negativa. Quando esta joga contra um jovem num torneio, no México, Beth questiona-o acerca dos seus planos após conquistar o título mundial. Questão esta que foi recebida com confusão e indecisão. Apesar de Beth não ser pré-adolescente, tem apenas 20 e poucos anos aquando da sua vitória. Será o pico de glória assim tão bom? Juntando isto à tese de coletividade e à importância dada ao papel que as relações que construímos têm na nossa felicidade e satisfação pessoal, não faria sentido Beth perder?
Após a possibilidade ambígua de uma relação amorosa com Townes e todo o apoio que recebe dos seus amigos, é-nos dado a entender que Beth finalmente percebe e valoriza o papel das relações que criou. Reconhece que pode ser feliz, muito além do seu amor pelo xadrez. Com isto, Beth poderia perder, mas não ficaria tão destruída. Saberia que não está sozinha e que encontraria felicidade noutros aspetos da sua vida – tudo isto com a possibilidade de repetir todo o processo do torneio de xadrez, prolongando o seu percurso profissional. Enquanto estudo de personagem, este final, na minha opinião, seria excelente. Porém, seria muito negativo no que toca à satisfação dos espetadores, visto que poderiam sentir que investiram numa história com um final dececionante.
Contudo, este final seria ignorar uma das mais importantes lições que Beth aprendeu, em troca de um mais filosófico e mais realista, visto que a sua epifania anti-individualista é o motivo da vitória. E, sejamos honestos, depois de tudo o que Beth passou, não é de todo impensável o facto de ela ganhar todo o torneio, no final.
Com esta análise, não estou a tentar dizer que um final é melhor do que o outro. Apenas evidencio que a série está tão bem conseguida que qualquer um dos resultados fariam sentido, sendo que têm algo em comum: Beth ganha sempre. Em suma, é-nos dado um final imprevisível e cativante que ensina quem vê, que levanta questões sem respostas e que deixa espaço para internas discussões interessantes, por parte do telespetador.
Beth enquanto peão político
Um dos fatores mais interessantes deste final foi os seus últimos dois minutos. Quando Beth está a ser levada para o aeroporto, é-lhe pedido que faça um discurso contra os soviéticos, revelando-nos que Beth é também um simples peão na Guerra Fria. A verdade é que, tal como o xadrez, a Guerra Fria foi um jogo estratégico e silencioso, desenvolvido através da previsão do próximo passo do inimigo e que, tal como na história de Beth, os seus protagonistas recorrem à ajuda de alianças para vencer.
O facto de Beth representar os Estados Unidos da América não significa que ela tenha de adotar o mesmo ódio pelo inimigo ou que se deixe ser manipulada. Beth, inicialmente, nega o apoio financeiro de uma associação católica que a tenta usar como propaganda anti-soviética. Neste mesmo sentido, no final, volta a recusar-se a ser usada como um peão sacrificado no “jogo” da Guerra Fria, novamente, quando sai do carro que a levava ao aeroporto e caminha pelas ruas russas, onde acaba por jogar xadrez com um grupo de cidadãos.
O programa, com isto, faz questão de não tomar uma posição negativa face à nação russa, mostrando a importância da tolerância e da colaboração. Em suma, com esta decisão, Beth consolida a tese de coletividade que o programa sublinhou ao longo dos seus sete episódios, aproveitando para marcar uma posição política no processo.
E agora?
Muitos consideram o final de uma história a parte mais complicada da sua construção. É difícil consolidar a tese de um trabalho e, simultaneamente, oferecer um final satisfatório para todas as personagens – tudo isto enquanto se tenta manter um ponto de vista próprio acerca de um determinado assunto.
O “Gambito de Dama”, mesmo sem este final, seria uma excelente série. Porém, não deixaria este legado que tem vindo a construir. O rigor e cuidado numa série que, na sua mais pura essência, é um estudo de personagem (e que personagem!) não podem ser desvalorizados. Confere ainda um final que não só respeita as diversas dimensões da sua protagonista, como também percebe a importância do contexto e de fatores externos.
Penso que, com esta aposta, a Netflix acabou por aumentar a expetativa dos seus telespetadores para futuros projetos. Considero ainda importante manter um olho em Anya, que, se mantiver este nível, tem o potencial de se tornar numa das grandes atrizes da sua geração.
Artigo revisto por Beatriz Campos
Fonte da foto de Capa: Medium
AUTORIA
Natural de Mafra, este estudante de jornalismo ainda não sabe o que quer ou vai fazer mas pode garantir que vai procurar respostas nas artes visuais. Amante de cinema, gostaria de um dia trabalhar em algo relacionado com a área, mas tal como foi dito anteriormente, ainda é uma incógnita… Talvez descubra no próximo filme! Gosta do escapismo e identificação que a arte nos traz, e acredita na importância de contar histórias sobre pessoas, quer seja numa série ou numa reportagem.