Grande Entrevista e Reportagem

Enxaqueca: muito mais do que uma dor de cabeça

Cancelar planos à última da hora e passar o dia na cama. Andar constantemente com medicamentos SOS atrás e pedir aos amigos para não porem perfume. Parecem coisas fúteis, mas são, na realidade, coisas que caracterizam o dia a dia de quem vive com enxaqueca. 

Há quem ainda pense que são simples dores de cabeça, mas é muito mais do que isso. Segundo a MIGRA- Associação de Doentes com Enxaqueca e Cefaleias, a enxaqueca é uma doença neurológica crónica caracterizada pela ocorrência de episódios de dor moderada a forte, pulsátil ou latejante, que geralmente começa de um só lado da cabeça. É frequentemente acompanhada de náuseas e/ou vómitos, intolerância à luz, ao ruído e aos cheiros, e intensifica-se com o esforço físico – o que a torna altamente incapacitante para quem vive perante esta realidade.

De acordo com o jornal Público, a enxaqueca afeta cerca de 12% a 15% da população mundial e, em Portugal, há pelo menos dois milhões de pessoas que sofrem desta doença.

Uma dessas pessoas é Raquel, cujas dores de cabeça começaram aos 12 anos, sendo que apenas com 21 anos foi diagnosticada com enxaqueca crónica. Após um longo caminho de tentativa e erro na medicação, hoje, com 27 anos, consegue finalmente ver a luz ao fundo do túnel graças a um tratamento inovador disponível no Serviço Nacional de Saúde. 

Raquel fotografada por Aline Macedo

O começo

Foi quando começou a menstruar, aos 12 anos, que surgiram as primeiras dores de cabeça. Inicialmente, eram como “dores de rotina”: “Aí apercebi-me logo de que havia um padrão: acontecia normalmente aos sábados, que era quando eu mudava a rotina, dormia mais tempo”, conta Raquel. Além disso, rapidamente se apercebeu também de que um ben-u-ron não aliviava a dor, da mesma forma que descansar também não surtia efeito. “Normalmente isso já é um sinal, porque se fosse uma dor de cabeça ‘normal’ passava com um ben-u-ron e descanso”, afirma.

Ao longo dos anos, as dores foram-se intensificando, tornando-se também mais regulares – passou a ter noutros dias da semana. Por vezes, eram tão fortes que vomitava.  

O diagnóstico e tratamentos

Em primeira instância, recorreu ao médico de família, que desvalorizou as dores ao atribuir a causa das mesmas à pílula.

“Eu sinto que o que dificultou muito as coisas foi eu queixar-me ao médico de família e nunca me ter sido dado um diagnóstico de que isto poderia ser enxaqueca. A minha dor era sempre descartada.”

Somente com 21 anos, nove anos depois de surgirem as dores de cabeça, e depois de já ter recorrido a profissionais de medicina geral e urgências hospitalares, Raquel foi pela primeira vez a uma consulta de Neurologia. Fez ainda uma Tomografia Computorizada, mais regularmente chamada de TAC, e uma Ressonância Magnética para descartar patologias mais severas, como tumores. Foi então que a enxaqueca surgiu como diagnóstico e que começou um tratamento profilático, isto é, um tratamento com medicação para prevenir e atenuar as crises, tratamento esse que começou a surtir efeito na diminuição da frequência e intensidade das dores. 

O leque de tratamentos é grande e, por isso, a sua adequação ao paciente é descoberta na base da tentativa e erro. Foram vários anos, tratamentos e profissionais de saúde. 

Raquel afirma que obter este diagnóstico foi crucial para começar a pesquisar mais sobre a doença e, através de um maior conhecimento, tentar fazer tudo o que está ao seu alcance para evitar as crises. Nesse sentido, descobriu a importância de fazer um diário da dor,para perceber o que é que desperta as crises e que mudanças poderia implementar na sua rotina para as evitar, mesmo sabendo que algumas são inevitáveis. “Comecei a perceber algumas coisas sobre esta doença, nomeadamente que ela precisa de rotina: dormir sempre o mesmo número de horas, não ficar muito tempo sem comer, ter uma alimentação saudável, beber muita água e evitar o consumo de certos alimentos como chocolates, citrinos e álcool”, explica.Além disso, começou a exercitar-se, indo ao ginásio, fazendo yoga e, no último ano, apostando em aulas de natação – tudo isto, obviamente, aliado à medicação que faz. 

No entanto, as crises, que tenta evitar com todos os parâmetros descritos acima, são também a razão de nem sempre os poder cumprir, pois torna-se impossível ter energia para ir ao ginásio antes, durante e após uma crise. Antes de uma crise, o corpo já apresenta alguns sinais de fraqueza, que se estendem até aos dias após ela terminar. 

“A dor de cabeça das enxaquecas tem várias intensidades, mas é sempre extremamente incapacitante. Imagine ter uma pressão muito forte na cabeça, uma dor que muitas vezes é pulsátil. Parece que há algo a rebentar dentro da cabeça.”.

Neurologista Isabel Luzeiro para o jornal Público 

Pelo meio do seu percurso, procurou ainda tratamentos alternativos que fossem complementares, como acupuntura, massagens terapêuticas e osteopatia. Mais recentemente, iniciou também consultas de terapia, que considera essencial, uma vez que os fatores psicológicos são um dos mais comuns desencadeadores das crises de enxaquecas, segundo a MIGRA- Associação Portuguesa de Doentes com Enxaqueca e Cefaleias. 

Mesmo com todos os cuidados que passou a adotar ao longo dos últimos anos, as crises não abrandaram. “Eu estava a ter sempre uma a duas crises de enxaqueca por semana, o que ainda é um número significativo”, confessa Raquel. Em 2022 voltou a ter uma crise de cinco dias seguidos, que considerou bastante grave. Achou inédito, porque desde que estava em tratamento tal nunca tinha sucedido, mas apercebeu-se de que aconteceu numa altura de grande stress emocional, ligado ao trabalho. No final do ano, as crises já eram de uma semana, mas em março de 2023 passou 13 dias seguidos com dor de cabeça e em abril esse número aumentou para 22 dias. Essa foi a sua pior fase. 

A luz ao fundo do túnel 

Com as dores a agravarem-se, conseguiu pedir o acompanhamento no hospital público e começar um novo tratamento com injeções, que é administrado a pessoas que já testaram vários tratamentos com medicação sem efeito: “foi a minha réstia de esperança”, confessa. Iniciou o tratamento em maio e até agora só tem duas doses, mas já se estão a revelar bastante eficazes: “consigo estar 15 dias sem qualquer dor de cabeça, o que era impossível há vários anos. No mês passado estive 19 dias sem nenhuma dor de cabeça.”

A médica neurologista Isabel Luzeiro, explicou, em declarações ao jornal Público, do que se tratam estas injeções: “São tratamentos com anticorpos monoclonais que vieram revolucionar a forma como tratamos os doentes. São medicamentos administrados com uma injeção subcutânea, uma vez por mês ou de três em três meses, que ajudam a reduzir bastante a frequência das crises. O problema destes fármacos é que só são distribuídos ao nível hospitalar no Serviço Nacional de Saúde e é preciso que os doentes cheguem às consultas, o que pode demorar muitos meses”.

O dia a dia

Quando questionada sobre como é o dia a dia de alguém que vive com enxaqueca, Raquel, que se considera uma pessoa bastante sociável, não hesita em afirmar que o que mais a afeta é o facto de faltar a eventos sociais e ter de alterar planos para ficar na cama ou em repouso em casa. Como consequência disso, começou a sentir alguma ansiedade e medo de que as pessoas não entendessem. No entanto, teve a sorte de as pessoas à sua volta terem compreendido a sua condição. Quando sai fá-lo com alguns condicionamentos, pois determinados locais e ambientes podem desencadear uma dor de cabeça, como sítios fechados, com barulhos e cheiros intensos. Coisas simples como estar num carro com amigos e pedir que coloquem a música mais baixa fazem parte do seu dia a dia e do de quem a rodeia. 

O apoio do Sistema Nacional de Saúde

Após 15 anos do início das suas dores de cabeça e de ter passado por vários profissionais de saúde, Raquel sente-se grata pelo tratamento a que tem acesso de forma gratuita no Sistema Nacional de Saúde atualmente. Afirma que a evolução é positiva e que as “coisas estão a melhorar”, mas, ainda assim, considera que ainda há vários problemas na fase de diagnóstico até se chegar ao tratamento. “Devia haver maior sensibilização nos centros de saúde e profissionais de medicina geral para este tipo de doença, pois há várias pessoas a sofrer com este problema e esses são os primeiros profissionais a quem as pessoas vão recorrer, logo tem de haver maior sensibilização para que o diagnóstico seja mais rápido e os tratamentos mais eficazes”, ressalta. Da mesma forma que a sensibilização deveria também passar pelas entidades patronais, que acabam por desvalorizar por ser uma doença invisível – não é comprovado através de exames, apenas é diagnosticado pelos sintomas do doente. 

Mesmo com constantes avanços na tecnologia, não existe ainda uma cura para esta doença crónica que se manifesta de uma forma incapacitante. Resta aos doentes procurar formas de minimizar a dor e a regularidade das crises, embora muitas vezes não seja bem sucedido. É viver o dia a dia sem fazer planos a longo prazo. 

Fonte da capa: Pexels

Artigo revisto por Adriana Vicente

AUTORIA

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Luísa Montez é redatora da ESCS Magazine desde novembro de 2020, tendo começado por escrever apenas para a secção de Moda e Lifestyle. Após o sucesso do seu artigo escrito, excecionalmente, para a secção de Grande Entrevista e Reportagem, decidiu aceitar o convite e fazer parte da mesma. Antes de entrar na ESCS já sabia que queria pertencer à revista, pois a escrita é um dos seus pontos fortes.