Dia da Língua Gestual Portuguesa – O testemunho de quem dela depende
“Eu, Bruna Saraiva, Surda, portadora do implante coclear 5, estudante da Escola Secundária João de Deus, jovem de 18 anos”. É assim que Bruna se apresenta enquanto gesticula na sua língua materna, num vídeo que fez para a sua petição. Apela ao Ministério da Educação que institua uma hora por semana de Língua Gestual Portuguesa em todas as turmas. E sublinha ainda: “sou cidadã Surda, portuguesa, pertenço ao meu país”, (…) é uma injustiça termos disciplinas de Língua Estrangeira, para que possamos entender os de fora, e não ter disciplina de Língua Gestual Portuguesa, para entendermos os de cá que falam português, mas de forma ‘diferente’”. Ser Surdo passa muito por isto, pelo desafio constante de se tentar integrar numa sociedade à qual se pertence, mas onde não se é bem acolhido. A língua gestual é a língua materna dos Surdos e é a ponte que liga ouvintes a não ouvintes, sendo o principal motor de integração destes últimos.
O reconhecimento enquanto língua, a 15 de novembro de 1997, pela Constituição Portuguesa, foi, sem dúvida, um passo importante no desenvolvimento e apoio desta forma de comunicar. No entanto, e apesar disso, persistem alguns preconceitos a desmistificar e barreiras a quebrar. Neste sentido, a celebração do Dia da Língua Gestual Portuguesa, a 15 de novembro, pretende, sobretudo, reforçar o respeito pelos direitos das pessoas Surdas, por vezes esquecidas num mundo que não parece ser feito para todos. Para nos ajudar a perceber como é viver com Surdez, fomos falar com a Bruna Saraiva, que, com 18 anos, já voa pelas redes sociais, tentando chegar ao máximo de pessoas através do projeto “Asas Universais”. Mas antes vamos esclarecer alguns dos erros mais comuns.
Porquê ‘língua’ e não ‘linguagem’
O erro mais comum quando se fala de Língua Gestual é assumi-la como Linguagem Gestual, no entanto trata-se de uma confusão. A linguagem refere-se a qualquer meio sistemático através do qual o ser humano exprime ideias e pensamentos, seja através da fala, da escrita ou de símbolos. Enquanto a língua é um código verbal, isto é, um conjunto de palavras que detém significado para um determinado grupo e, por isso, pressupõe a existência de regras e de normas de combinação específicas, conhecida como Gramática. É importante ainda referir outro preconceito recorrente que se prende ao facto de muitas pessoas acreditarem que existe uma língua gestual universal. Essa ideia é errada, uma vez que a língua gestual, sendo uma língua, varia de país para país e até de região para região, tal como as línguas faladas e escritas, criando também as suas próprias palavras.
Surdo/a-Mudo/a não existe
Um dos mitos mais antigos e que continua a ser utilizado por grande parte das pessoas é a designação “Surdo-Mudo”. Este termo advém do facto de alguns Surdos não terem desenvolvido as suas competências para falar e daí apenas produzirem alguns sons. No entanto, ser mudo nada tem que ver com Surdez, uma vez que quem nasce Surdo tem capacidades de falar com ajuda de terapia da fala para desenvolver a sua articulação, como aconteceu com a Bruna. Trata-se apenas de uma questão de esforço e de exercitação.
Esforço é uma das palavras que descreve a Bruna. Nasceu saudável, mas a febre viral que teve com um ano de idade e as constantes gastroenterites fizeram com que as suas cócleas (parte interna do ouvido que converte ondas sonoras em sinais nervosos) falhassem. Dos 3 aos 5 anos, começou a perder a audição, começando também a ter algumas dificuldades no desenvolvimento da fala. Foi usando aparelhos auditivos até que aos 8 anos colocou o Implante Coclear no ouvido direito.
Felizmente, teve a oportunidade de melhorar a sua audição através do dispositivo que, confessa, lhe causa algumas dores de cabeça, no entanto, não deixa de ser o seu “milagre doce com desvantagens”, o seu “chocolatinho”. Aliado à Surdez vem todo um processo de aprendizagem e integração, pelo qual Bruna passou na Escola de Referência para Surdos, onde estuda desde o 1º ano de escolaridade. Quando questionada sobre as dificuldades que teve, afirma que a família foi crucial neste processo, uma vez que foi com a sua exigência e interação persistente que conseguiu desenvolver a fala, para além da terapia. Emocionada, conta que, aos 5 anos (sem implante nem aparelho), colocava a cabeça no peito da tia, enquanto esta lhe lia histórias de embalar, sentindo, assim, a vibração da sua voz. Mais tarde, experimentou colocar no pescoço e sentiu essa vibração ainda mais forte. Foram essas pequenas estratégias desenvolvidas no seio familiar que fizeram com que Bruna conseguisse sempre perceber os que a rodeavam.
Os dados são breves e poucos rigorosos no que respeita aos deficientes auditivos em Portugal, no entanto, de acordo com os Censos de 2001, existiam em Portugal 84 172 indivíduos com deficiência auditiva. A falta de clareza nestes dados e no seu recolher reforça ainda mais a falta de informação que existe, quer junto das autoridades competentes, quer da comunidade, o que torna a integração social destes indivíduos ainda mais difícil. Sobre isto, Bruna insiste encarecidamente numa petição que criou, onde apela que passe a existir em todas as turmas um tempo por semana de Língua Gestual Portuguesa. Quando confrontada com os problemas existentes, a Bruna mostra-se decidida sobre quem acha que deve mudar este rumo: os governantes, pois são eles que dão o exemplo, bem como a sociedade ouvinte. Para ela, grande parte da desinformação sentida vem do facto de se falar pouco de Surdos e de Língua Gestual, mas também de se fazer pouco por isso. A colocação de legendas e de intérpretes em todos os vídeos, noticiários e programas seria uma das soluções. Há igualmente um esforço presencial a ser feito: “se os Surdos se esforçam para ler os lábios e escrever, os ouvintes também o deveriam fazer”, juntamente com a aprendizagem da LGP. A comunicação exige esforço de ambas as partes, “50% dos Surdos e 50% dos ouvintes”.
Foi por isso que, em 2018, decidiu criar o seu projeto “Asas Universais”, atribuindo-lhe este nome, pois, tal como o universo, também as suas lutas são infinitas. Nas suas páginas de Instagram e de Facebook, partilha diariamente as suas lutas e conquistas, da mesma forma que espalha o seu amor pela música. “Faz-me sentir como se estivesse no paraíso”. E é para mostrar que tudo é possível que a Bruna continua a encher de vida o feed de quem a segue, pois “vivemos num universo ilimitado e podemos ter todos a mesma acessibilidade”. Prova disso é o seu sucesso inesperado, tendo inclusive sido convidada pela RTP1 para interpretar uma música, episódio do qual não se esquece, uma vez que foi no palco que experimentou sentir a batida da música nos pés, estando descalça: “são pequenos momentos que nos fazem sentir um ser humano vivo!”, conta.
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Ser Surdo em tempos de pandemia
Se a comunicação entre Surdos e ouvintes antes da utilização de máscaras já se tornava tarefa difícil, em tempos de pandemia, não se tornou mais fácil. Para além da importância da leitura labial, a qual Bruna afirma ser cansativa para a visão de quem o faz, outros gestos como o arquear das sobrancelhas e dos ombros são extremamente importantes para a passagem de uma mensagem. Deste modo, nos dias que correm, a máscara tornou-se um entrave à leitura dos lábios e das feições.
Para Bruna, a solução encontrada passa por apelar a que escrevam ou que baixem a máscara por uns minutos, sem que ela nunca retire a sua. Infelizmente, nem toda a gente com quem se cruza reage empaticamente a este pedido, como aconteceu recentemente, nos correios, onde a senhora, mesmo com o acrílico que as separava, não quis baixar a máscara nem escrever, alegando que iria perder o seu tempo com isso e começando de imediato a levantar o tom de voz. Perante isto, Bruna só retira uma conclusão: de forma geral, “não há a mínima consideração pelas pessoas Surdas”, pois já não é a primeira vez que lhe acontece algo do género. Diz ainda que “Portugal é um país que está pouco desenvolvido para as pessoas Surdas. Antes da quarentena já era difícil, mas agora está a tornar-se cada vez mais complicado. Fazem-nos sentir como se não tivéssemos direito à comunicação. (…) Vivemos numa pandemia que não nos permite ser independentes nem inclusivos devido ao desaparecimento das leituras labiais”.
Mas como em cada acontecimento, a Bruna viu uma oportunidade. Foi durante a quarentena que em si despertou uma vontade de ajudar o mundo e, em conjunto com um escuteiro, também Surdo, começou a dar aulas de língua gestual aos escuteiros de todo o país. Assim, a Bruna agradece ao universo por todas estas oportunidades que, num momento tão crítico, a encheram de felicidade.
Revisto por Maria Ponce Madeira
AUTORIA
Luísa Montez é redatora da ESCS Magazine desde novembro de 2020, tendo começado por escrever apenas para a secção de Moda e Lifestyle. Após o sucesso do seu artigo escrito, excecionalmente, para a secção de Grande Entrevista e Reportagem, decidiu aceitar o convite e fazer parte da mesma. Antes de entrar na ESCS já sabia que queria pertencer à revista, pois a escrita é um dos seus pontos fortes.