A ilusão do eco friendly na indústria alimentar
Mais-valia, mais·-va·li·a: nome feminino. Segundo a doutrina marxista, é o lucro do qual beneficiam os capitalistas e que é constituído pela diferença entre o valor dos bens produzidos pelos trabalhadores e os salários recebidos por estes.
O tema que uso como início para este não-tão-saboroso artigo é empregue por Karl Marx, de forma a simplificar o conceito de “lucro”. Dado que pretendemos abordar três polos, entre eles o capitalismo, seria indispensável uma menção ao seu grande opositor.
Num passar de olhos pelas redes sociais, reparei, por entre o conteúdo menos relevante, num assunto que se encontrava momentaneamente na berra. Já sabemos que, dentro do grupo de cyber-revolucionários – hashtag Marisa Matias para presidente ou hashtag Linda Martini, – todos os dias são criados temas polémicos que rapidamente se evaporam passados alguns dias ou até mesmo no dia seguinte. Desta vez, não se tratou de um inequívoco de feministas maquilhadas de ideologias igualitárias, mas de um hambúrguer controverso. Um hambúrguer de plantas, mais precisamente.
Após a Burger King ter lançado o seu segundo hambúrguer direcionado para os grandes amigos dos animais, a McDonald’s ficou com ciúmes. Mas, antes de avançar, é importante relembrar a rapaziada influencer de que este artigo não é patrocinado pelas cadeias de fast food nele mencionadas.
Como dizia, é provável que já tenham visto ou provado o hambúrguer vegetariano da McDonald’s. Foi feito a pensar nas tendências de consumo e à base de quinoa e vegetais – dizem eles, porque hoje em dia já não se pode confiar. Entretanto, no mês passado, foi anunciado, através de um falso anonimato, que iriam ter uma segunda novidade à base de plantas, com parceria da misteriosa Beyond Meat, inicialmente ocultada pela McDonald’s. Esta notícia pode ser vista de duas formas: como quase uma campanha ninja – dado que, durante umas horas, nas redes sociais, não se partilhava mais nada – ou como uma realidade paralela que só o nicho vegan teve direito a presenciar. Estranhamente, não me lembro de ver outdoors, em cada esquina de Lisboa, a anunciar as boas novas.
Inspirada na tendência da Burger King (eu bem vos disse: ciúmes), a cadeia dos irmãos pioneiros McDonald tenciona criar, esperançosamente, uma nova linha de produtos isentos de origem animal. No comunicado do lançamento do McPlant, Ian Borden, presidente da McDonald’s International, reforça que criaram um hambúrguer delicioso que será a primeira opção do menu, sendo feito apenas de plantas.
Deparamo-nos com uma situação peculiar: subitamente, temos cadeias de fast food a produzir menus à base de plantas que vão totalmente contra os propósitos a que estávamos habituados. Para os mais distraídos, os impactos destas empresas de franchising não se limitam apenas a incentivar a evolução de números de obesidade, mas também são responsáveis pelo crescimento do aquecimento global que, até à atualidade, temos vindo a observar. Naturalmente, criam-se discrepâncias dentro do mundo vegan.
No Instagram de Bárbara Cardoso, a youtuber deu-nos a conhecer um leque de opiniões que incentivam a introdução de opções vegan nas cadeias de fast food, como também uma contestação perante esta ideia de evolução.
Há quem acredite que estamos a caminhar para uma presença utópica, totalmente vegan, nas cadeias de fast food. Excluindo o famoso argumento de isto ser produto de uma maior afluência de vegans com “tendência obesa” ou com nostalgia de um passado carnívoro, um fator relevante, mencionado na recolha feita pela youtuber, é o facto de, com a presença destas opções vegan, haver uma súbita disponibilidade deste nicho nas jantaradas entre amigos. É frequente, num grupo de amigos omnívoros, o facto de não existir total flexibilidade para serem organizados jantares ocasionais, num restaurante vegan, de forma a acolher o indivíduo do grupo que tenha essa prática alimentar. Num cenário realista, este acaba por comer uma salada num restaurante omnívoro ou por recusar a saída em grupo, por falta de compatibilidade. O facto de a opção vegan ter uma presença superior nas cadeias de fast food faz com que este tipo de situações se reduza, principalmente se estivermos a falar de jovens que, mais frequentemente, se veem obrigados a optar por uma alimentação “barata” e, por conseguinte, menos saudável.
Muitos seguidores apontam a validação que é criada com estas novas opções. A pessoa vegan deixa de ser vista como uma aberração e passa a fazer parte da sociedade como um indivíduo que, tal como aqueles ao seu redor, só quer ter uma refeição saborosa.
Desse lado, temos influências de José Mário Branco. É verdade, o músico usou a mítica frase “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, de Camões, usada originalmente para prever um abril impulsionador na tomada de posses portuguesas, sem pensar que, em 2020, os jovens a usariam para defender hambúrgueres. São lutas com outro sabor. Não censuremos a apropriação desta referência. Por baixo de tanto unto gorduroso, conseguimos ter um ponto de vista válido.
No início deste artigo citei um verbete do dicionário que nos esclarecia o termo “mais-valia”, precisamente para fazer a ponte para o segundo ponto de vista. A vertente oponente da vertente vegan preocupa-se com a tendência interesseira que banha, já conhecidamente, a economia mundial, sendo que, segundo algumas opiniões, é referido o aproveitamento que a McDonald’s está a pôr em prática. Quase como um lucro escondido por entre camadas de alface, digamos.
Não sou entendida em economia, portanto, decidi refugiar-me em Marx. Rapidamente me apercebi de que existe um fator que muda completamente o cenário. Enquanto o olhar comunista aponta o dedo ao lucro feito pelas empresas, isto é, à diferença existente entre as receitas concretizadas pelas empresas em comparação com os valores desproporcionais oferecidos ao proletariado, o nicho vegan aponta para uma direção mais afunilada. A preocupação vai ao encontro do coração do consumidor. Não se trata do lucro que não se reflete num aumento das remunerações, mas do lucro criado através da traição para se aproximar, de forma ilusória, das preferências do cliente. Empresas como a Burger King ou a McDonald’s aconchegam-se no nosso coração, personalizando-se em função dos nossos ideais, enquanto procuram cada vez mais formas de nos mexerem na carteira.
A parte opositora do crescimento vegan, na comunidade de fast food, leva-nos a questionar se será uma mais-valia o facto de abrir portas a uma normalização deste estilo de vida se, em contrapartida, se trata de uma falsa mudança de atitudes de empresas mundialmente reconhecidas.
É certo que o facto de haver opções vegan em cadeias de rápido consumo permite que quem nunca tenha sido familiarizado com o consumo das mesmas tenha oportunidade de ser introduzido a este estilo de vida. Se mil pessoas por dia optarem pela opção vegan, em vez do seu típico Big Mac, já estamos lentamente a caminhar para o combate à indústria animal. Mas não será isso também uma ilusão?
Cria-se um paradoxo em que, por um lado, estaríamos a aumentar o consumo aparentemente eco friendly nessas cadeias, mas, ao mesmo tempo, estaríamos a dar dinheiro a uma empresa que, numa visão não-utópica, nunca abdicaria da sua produção de produtos animais ou da sua precariedade laboral.
Para os jovens omnívoros que estejam a ler este artigo e estejam a entrar em pânico, trato de vos acalmar: os mukbangs no YouTube irão eventualmente adaptar-se. Até porque é relevante lembrar que os media têm, inevitavelmente, impacto na mudança dos consumos da sociedade. Não é descabido afirmar que muitos jovens só começarão a ponderar praticar refeições vegan caso vejam um youtuber, por si idolatrado, a consumir um Rebel Whooper dentro do seu jeep topo de gama.
Trago os mukbangs de forma a consolidar toda esta mixórdia que acabamos de saborear, precisamente para apontar o maior problema destas cadeias. O problema não está necessariamente na produção de carne ou na forma não-saudável como são feitos os seus produtos – e muito menos nos preços elevados que põem em prática. Existirão sempre pessoas prontas a gastar dinheiro em produtos que não têm uma boa relação qualidade-preço. Não está posto em causa o tipo de consumidor destas cadeias que acaba por ser alargado (ou não) ao haver cada vez mais opções vegan.
Está em causa a quantidade abusiva de carne produzida, o greenwashing que já espreita por entre as grelhas e a tendência em aumentar o consumo. Não é óbvio que se trata de um passo a favor da mudança. Nem é certo que a ideia de criar cadeias de fast food exclusivamente vegan seja uma opção tão viável. Só há a certeza, e mesmo assim tremida, de que será melhor do que incentivar toda a produção de um hambúrguer de carne.
Antes de nos levantarmos desta mesa, gostava de que tivéssemos respostas a estas questões, mas, de momento, é impossível tê-las. Tudo indica que estamos somente perante uma competição capitalista entre as empresas que fomos deixando evoluir. Como consumidores, é ideal fazermos os possíveis: consumir produtos provenientes das cadeias em questão com menor frequência, caminhar para uma consciencialização alimentar e lembrarmo-nos de que nem tudo o que está do nosso lado está a nosso favor.
Artigo revisto por Beatriz Campos
AUTORIA
Estuda audiovisuais, no entanto sempre teve necessidade de se comunicar através da escrita. Foi no secundário que começou por incentivo dos professores a desenvolver críticas e a escrever poesia. Agora, tem como principal interesse o Cinema, onde tenciona dedicar-se, futuramente. Outro fator importante para si é também a análise e crítica de assuntos sociais que lhe parecem exigir maior atenção.