Tenho ‘Insta’, logo existo
Em 1637, René Descartes escrevia, na quarta versão do seu Discurso sobre o Método, uma das frases mais emblemáticas e vilmente apropriadas da história da filosofia: “cogito, ergo sum”. Isto é, em português, “penso, logo sou”, e não, como erroneamente se convencionou, inclusivamente nos manuais de filosofia do ensino secundário, “penso, logo existo”. O filósofo francês procurava estabelecer todo o conhecimento a partir de bases sólidas e seguras, precisando, para tal, de um ponto de partida.
Assim, negou todo o conhecimento fundado a partir dos sentidos, dos sonhos e, inclusivamente, das fórmulas matemáticas – contestando a arbitrariedade destas últimas. Para Descartes, rejeitar todas as crenças antigas e todas as impressões (embora o termo ‘impressionismo’ ainda tivesse de esperar mais de 200 anos para ser cunhado), colocando os juízos de valor em suspenso e utilizando a dúvida como método, era o caminho para atingir o conhecimento verdadeiro – com todas as ressalvas que o adjetivo ‘verdadeiro’ implica por si só.
Negando tudo, porém, percebeu que não se poderia negar a si mesmo e à sua existência, pois necessitava de um princípio fundador da sua teoria epistemológica. Ao assumir tudo como falso, Descartes deu conta de que o seu pensamento e a sua dúvida metódica eram indubitavelmente existentes, pelo que a sua condição de tangibilidade era comprovada pelo facto de pensar.
Em 2020, passei umas curtas férias em Londres, aproveitando para visitar uma emérita amiga residente na ilha britânica. Na viagem de regresso, já o avião aterrara no Porto quando, à saída da aeronave, ouvi um jovem afirmar, mutatis mutandis, algo como isto: “Não recebi nenhuma mensagem durante o voo. Sinto que não existo.”
O que diria Descartes, um dos pais da ciência moderna, sobre a era digital, em que todos temos uma espécie de existência dupla: a efetiva e a online?
É importante ressalvar que a citada frase foi dita num tom gozão e descontraído. No entanto, muitas vezes recalcamos as grandes questões do mundo em pequenos momentos, aparentemente inócuos, aparentemente minudentes. No caminho até casa, pus-me a pensar: e se de facto caminharmos para um mundo em que a nossa ausência digital, isto é, a nossa ausência das redes sociais, nos anule enquanto seres existentes? Até que ponto a existência de um perfil social na internet reduz a tangibilidade da nossa existência real, apenas decalcada nos confins do mundo que são os registos civis e as instâncias fiscais?
É, já nos dias de hoje muito comum uma reação de absoluta estranheza quando um jovem afirma não ter perfil de Facebook ou Instagram, falando das plataformas mais populares. Será que, à luz do conceito de consciência coletiva do sociólogo Émile Durkheim, a ‘inconsciência coletiva’ das novas gerações considera que o ser humano se vê amputado de uma das suas dimensões se não marcar presença na internet? Seria provavelmente preciso ressuscitar Durkheim, falecido há mais de um século, para responder a esta questão com clarividência.
No entanto, partindo dos falíveis sentidos enunciados por Descartes, é notório que, cada vez mais, um indivíduo que não tenha redes sociais é uma espécie de eremita, uma espécie de Zarathustra ao contrário, afirmando a plenos pulmões que o futuro, simbolizado pelas tecnologias da comunicação, ele sim, nos torna eremitas, inclusive de nós mesmos, e que está na intimidade física do passado a melhor e mais humana forma de socialização e comunicação.
E, no entretanto, entre scrolls, stories, DM’s, likes e shares, Descartes e Durkheim, sepultados a escassos dois quilómetros de distância um do outro, continuam a discutir, de charuto na boca e mãos na cabeça, sobre a admirável era digital dos nossos dias, em que os sentidos são os deuses do imediatismo precipitado, o racionalismo científico é constantemente violado como crianças no Vaticano, e a meditação filosófica vista como uma gabarolice elitista servindo propósitos mal intencionados.
Olhem para mim. Tenho ‘Insta’, logo existo.
Artigo revisto por Mónica Harris
Fonte: VisualHunt. Licença: CC0 1.0
AUTORIA
Um indivíduo que o relembra, leitor, de que os livros e as opiniões são como o bolo-rei: têm a relevância que se lhe quiser dar. O seu maior talento é insistir em fazer coisas que não servem para nada: desde uma licenciatura em literatura luso-alemã, passando por poemas de qualidade mediana, rabiscos de táticas de futebol (um bizarro guilty pleasure) ou ensaios filosofico-autobiográficos, sem que tenha ainda percebido porque e para que o faz. Até porque já ninguém sabe o que é um ensaio.