O mito do regresso à normalidade
Desde que o novo coronavírus se propagou com incidência mundial, Bruno Aleixo, eminente vulto da cultura portuguesa contemporânea, optou, nas suas rubricas radiofónicas semanais, por falar precisamente sobre todos os temas menos o tema de que todos falam. Tenho-me sentido tentado a seguir o seu exemplo. Mas, na secção de opinião, tal afigura-se uma tarefa impossível.
As reações da população e da classe política ao vírus têm sido múltiplas ao redor do globo. Há quem ache que é uma manobra chinesa para assumir a hegemonia económica do mundo, como dissimuladamente vem propagando o habitualmente manipulador Trump. Há quem ache que é apenas um resfriado e que não afeta pessoas com histórico de atleta, como Bolsonaro. Há quem tenha aproveitado para instaurar, nas entrelinhas, uma autocracia, como Viktor Orbán.
Há quem tenha aproveitado as medidas de contenção para vigiar ainda mais os cidadãos do seu país, como Netanyahu. Há quem, membro de uma comunidade europeia, tenha mandado os desesperados italianos ‘desemerdar-se’ sozinhos, como Wopke Hoekstra. E há quem, em tempos, tenha achado boa ideia a população deixar-se contagiar para criar imunidade de grupo, como disse o agora infetado (e seguramente sem histórico de atleta) Boris Johnson*.
No entanto, há uma narrativa comum que dá a volta ao mundo: a de que vai ficar tudo bem e de que a ordem natural das coisas será, mais tarde ou mais cedo, restabelecida. Não. Não vai voltar tudo ao normal. Aliás, não só não vai como não pode. O decréscimo drástico da mobilidade tem mostrado um planeta com poderes regenerativos impensáveis no melhor dos nossos sonhos. O isolamento social tem provado que o trabalho à distância é uma modalidade perfeitamente praticável na maioria das profissões.
A desaceleração do fluxo económico tem provado que o ser humano precisava de descansar do comboio desgovernado rumo ao abismo que era a vida do novo milénio. Os serviços de saúde têm-se provado bastante mais importantes do que a defesa ou o orçamento para as forças armadas. A saúde tem-se provado um direito universal que não pode estar sujeito aos mecanismos imprevisíveis do mercado livre. As incontáveis ações de sensibilização para lavar bem as mãos têm mostrado o quão subrepticiamente a velocidade frenética do mundo de hoje, que descura a higiene, é um obstáculo para a nossa sobrevivência.
Tenho observado atentamente e com bastante preocupação a forma como os órgãos de comunicação social, vitais neste período, têm contribuído para propagar de forma hipócrita e falaciosa a ideia de que o mundo está a ser adiado ou, dito de outro modo, posto em pausa. É claro que não vai mudar tudo. Vai continuar a existir futebol, peixeirada televisiva sobre futebol, festivais de música cheios, salas de espetáculo em insolvência, praias a abarrotar e cinemas independentes às moscas. Posso aceitar com condescendência e impotência a estupidificação e ignorância autoinfligidas. O que não posso aceitar, enquanto estudante de jornalismo – e agora falando concretamente do jornalismo em Portugal –, é que a imprensa contribua para essa estupidificação com a passagem da ideia de que vai ficar tudo bem se batermos palminhas aos enfermeiros e colocarmos uma bandeira de Portugal à janela, como se tivéssemos voltado ao EURO 2004.
Não precisamos de poemas em telejornais, testemunhos comoventes de entes falecidos, nacionalismos bacocos e despropositados. Em suma, não cabe ao jornalismo esse papel de ‘emocionalizar’ os danos da pandemia. Ao jornalismo cabe, ontem, hoje e sempre, contar a verdade sem truques, venham eles dos instintos humanos mais básicos, como o patriotismo, venham eles das mais altas formas de arte, como a poesia.
A verdade é que a verdade do futuro é absolutamente imprevisível. Não é tempo de tentar fazer futurologias. Porém, questiono-me, será possível um futuro pós-pandemia rigorosamente igual ao passado? Será viável voltar a sobrecarregar os recursos naturais para ‘recuperar’ as economias mundiais? Será viável continuarmos com o mesmo fluxo de mobilidade humana, em especial a mobilidade turística, com toda a poluição que isso implica? Será sustentável manter jornadas laborais de oito ou mais horas diárias quando está à vista de todos que se produz em excesso?
Será que as empresas vão continuar a deslocalizar a sua produção para países subdesenvolvidos em busca de custos menores, esquecendo que, em cenários como este, a Divisão Internacional do Trabalho dita a paragem de todo o mundo em simultâneo? Será que as pessoas se irão sentir confortáveis quando confrontadas com grandes aglomerações, como festivais de música ou eventos desportivos? Será que se continuará a olhar para a saúde como um bem supérfluo? Será que a produção de bens e serviços manterá a profusão de outrora? Será que a liberdade individual e a privacidade serão colocadas em segundo plano em prol da segurança? Será que, com esta inusitada e acéfala onda de patriotismo idiota, a União Europeia e as democracias resistirão?
Os tempos são de dúvida. Naturalmente, a dúvida e o medo do desconhecido exaltam nos seres humanos um instinto natural para se agarrarem à realidade que conhecem. Ainda para mais considerando que não existe nenhum ser vivo habitando a Terra que possua memórias da anterior pandemia, a gripe pneumónica de 1918. Mas, se regressar à normalidade implicar regressar ao darwinismo que tem pautado sobretudo as sociedades ocidentais nos últimos dois séculos, receio que não teremos planeta que resista.
Slavoj Žižek, consagrado filósofo esloveno, afirmou recentemente que a única saída é a solidariedade internacional: “É claro, em situações como esta, que não podemos confiar decisões globais nos mercados e nos Estados. A cooperação internacional é o único caminho. Caso contrário, vamos voltar a uma sociedade primitiva-medieval em que os Estados lutam uns contra os ouros.”
Como a história se tem encarregado cabalmente de demonstrar, o liberalismo e a globalização só existem em tempos de prosperidade. Quando toca a pagar contas, aos bancos ou à vida, erguem-se muralhas entre países, empresas, povoações. Se o novo normal for o velho normal, salvar-se-á apenas quem puder.
*Afinal tinha histórico de atleta: entretanto, teve alta.
Artigo revisto por Rita Asseiceiro
Fonte da imagem em destaque: Associação Pais Alice Vieira
AUTORIA
Um indivíduo que o relembra, leitor, de que os livros e as opiniões são como o bolo-rei: têm a relevância que se lhe quiser dar. O seu maior talento é insistir em fazer coisas que não servem para nada: desde uma licenciatura em literatura luso-alemã, passando por poemas de qualidade mediana, rabiscos de táticas de futebol (um bizarro guilty pleasure) ou ensaios filosofico-autobiográficos, sem que tenha ainda percebido porque e para que o faz. Até porque já ninguém sabe o que é um ensaio.