Alerta CM! Descoberta a cura para o coronavírus: ler
Pensei em retirar o verbo com que termina o título desta crónica, mas achei que a menção ao CM já cumpre suficientemente os propósitos de mau jornalismo propositado.
Podemos começar por aqui. Esta estação televisiva tem tido, com a propagação da COVID-19 (que, por razões que desconheço, é uma menina), terreno fértil para o sensacionalismo com que nos brinda desde a sua fundação. Se já era o canal mais visto pelos portugueses, na semana passada bateu mesmo o seu recorde de audiências. Com o confinamento às habitações, a televisão tem recuperado terreno e importância. Ora, o problema é o monotema que ocupa praticamente toda a programação. O medo de morrer de coronavírus ainda nos fará morrer primeiro de endoidecimento. O facto de ainda não sabermos quanto tempo durará este isolamento agudiza para níveis assustadores a nossa já tão socialmente congénita ansiedade generalizada – que, com a democratização etária das redes sociais, deixou de ser apenas uma condição da juventude do limiar do milénio e do pós-milénio.
Parece que o mundo carregou no botão da pausa. A história está em suspenso. Ver mais um meme sobre o coronavírus não nos vai fazer sentir melhor. Ver mais um gráfico exponencial que não entendemos também não. Passar o dia ligados aos canais de notícias assistindo ao galopante crescimento do número de falecidos muito menos. Este vírus, não o corona, mas o da sobreinformação, veio glorificar e culminar a talvez derradeira Era do excesso. Não queremos acreditar que a vida que tínhamos – da velocidade, do consumo rápido, da mobilidade profusa – nos está interdita.
É tempo de ler. Desligar as notificações. O mundo pode esperar, porque está em pausa. Vou contra a corrente. Não recomendo que se leia A Peste de Camus, o Ensaio sobre a Cegueira de Saramago ou que se veja A Janela Indiscreta de Hitchcock. Teremos todo o tempo do mundo para refletir literária e culturalmente sobre o bicho. Leiam. A ficção de Kafka, Joyce, Luis Borges, Proust, Vergílio Ferreira… o que estiver à mão. Desde que coloque a vossa imagética noutra realidade. Para fazer repousar o vírus do pânico. Poesia. Porque não poesia? A língua portuguesa, sem precisar de sair do século XX, é pródiga em talento e brilhantismo mais do que suficientes no domínio da linguagem: Sá-Carneiro, Sophia, Sena, Cesariny, Fiama, Maria Teresa Horta, David Mourão-Ferreira, Luiza Neto Jorge, Herberto, Ruy Belo, e podia continuar uma página inteira. O Espalha-Factos, no âmbito das celebrações do dia mundial da poesia, publicou uma pequena lista de poemas que é um belo ponto de partida para os que duvidam do poder alienante da poesia: https://espalhafactos.com/2020/03/21/21-de-marco-poesia-contemporanea-portuguesa/.
Num período tão estranho e calamitoso como este, a literatura, como sempre acontece nestes períodos, emerge como proposta de salvação humanitária. Um calmante. Um respirar fundo. Uma forma diferente de ver o mundo. A parceira perfeita do ócio tão necessário para mover montanhas com o pensamento. As artes no geral servem para não servir propósito nenhum. E, com o corpo preso a uma casa e a alma presa ao medo, talvez seja tempo de parar de ver propósitos em tudo. O propósito é amigo da correria para o infinito. Corríamos na ânsia de chegar ao céu e agora mandam-nos ficar sentados no sofá, porque não há mundo para correr. O tempo parece novamente lento. A vida novamente depurada às ínfimas importâncias fisiológicas e emocionais. Deixemos o mundo repousar no seu angustiante stand-by. O mundo agora é a nossa casa, é dentro de nós próprios. Não. Não é suposto fingir que não se passa nada lá fora, acreditando imbecilmente que as coisas vão retomar o seu curso normal, exatamente nos mesmos moldes em que as “deixámos”. Não vão. E é nestes momentos, em que o medo nos come as palavras, que o livro serve o propósito de nos salvar da loucura.
Post scriptum. Num louvável serviço público, a revista Gerador compilou num só artigo tudo o que tem sido feito em favor da disponibilização gratuita de e-books neste período de censura da mobilidade. Porque nem todos temos a biblioteca do Nuno Rogeiro na nossa casa, o link: https://gerador.eu/entra-nas-paginas-sem-pedir-licenca-livros-de-acesso-aberto/
Artigo revisto por Bruna Gonçalves
AUTORIA
Um indivíduo que o relembra, leitor, de que os livros e as opiniões são como o bolo-rei: têm a relevância que se lhe quiser dar. O seu maior talento é insistir em fazer coisas que não servem para nada: desde uma licenciatura em literatura luso-alemã, passando por poemas de qualidade mediana, rabiscos de táticas de futebol (um bizarro guilty pleasure) ou ensaios filosofico-autobiográficos, sem que tenha ainda percebido porque e para que o faz. Até porque já ninguém sabe o que é um ensaio.