Literatura

ENTRE NÓS E A PALAVRA

Licença: CC0 Public Domain

Entre nós e as paredes, o nome que não pode ser pronunciado. A história relembra-nos de cercos militares de grande sapiência tática. A mesma história relembra-nos dos cercos sanitários das pandemias que antecederam esta. Mas o maior cerco não é o cerco físico. É o cerco desta palavra que não ouso mais repetir. Esta palavra que ergue muralhas mentais em redor dos que já estão fisicamente emparedados. Não ouso colocar em causa a importância vital dos que nos mantêm vivos: desde os médicos aos funcionários da limpeza, eles e elas sabem a quem me refiro. No entanto, ao menos esses têm uma missão: seguram o mundo nos ombros. A todos os outros, a quem se pede que trabalhem, ou que se veem obrigados a fazê-lo para terem dinheiro para comer, em áreas neste momento consideradas não fundamentais, no fundo, pedem-lhes que abdiquem da sua dignidade. Fazer figura de urso não é certamente a expressão mais literária, mas é a mais certeira. Pedem-lhes um esforço inútil porque incide sobre o incerto. Como ousam pedir aos estudantes para continuar a aprender pelo ralo de uma mísera webcam, se não sabem que mundo os espera quando saírem da toca? Como ousam exigir que se produza conhecimento quando o mundo parou? E não, não me digam que a vida não pode parar. Na verdade, eu quero que a economia se foda. Lá no mesmo sítio que as más-línguas, caro João César.

               Os emparedados, que aguardam um tempo que não tem relógio – perdoem-me novamente os que se expõem ao irritante e persistente bicho – estão a ser desumanamente esquecidos. Exigem, a uns, o tédio longo e forçado sobre o vazio, com a demência a espreitar neste labirinto fechado sobre si mesmo. De que vale ter tempo para refletir quando a vontade é sugada por uma névoa de um nada cristalizado que ecoa a eterno por todos os lados? Exigem, a outros, como eu, estudante de um instituto politécnico, que trabalhem com motivação e afinco, pois, dizem-me, a vida não pode parar. Como me podem exigir que tenha vontade de conhecer mais sobre um mundo que vejo ruir pela janela e pela televisão? Angustiam-me as mortes, a escolha dos que ficam e dos que vão, os funerais sem vivos a chorar pelos que morrem. Angustia-me tudo isso. Porém, a angústia acaba por ser uma pacifista estável. Pelo contrário, massacra-me violentamente o nome que não mais consigo ouvir ou pronunciar. Encurrala-me, como se não bastassem as paredes efetivas. Espanca-me porque insiste, persiste, ecoa escrito nas paredes, penetra na mais boçal das rotinas e dos hábitos que nos dignificam! Na voz dos familiares, dos amigos, dos conhecidos, dos pivôs de telejornais, dos redatores da imprensa escrita, dos locutores de rádio, a palavra que faz com que nós, os emparedados, nos sintamos todos aos poucos a enlouquecer, um pouco como o saudoso Jack Torrance, do imortal filme “The Shinning”. O confinamento, as paredes, tão aparentemente brancas e inofensivas, o tédio a que o tempo paralisado inflige, levou Jack a escrever, repetida e infinitamente, na sua máquina de escrever, a seguinte frase: “All work and no play makes Jack a dull boy”. A nós, que não somos necessários para manter o mundo vivo e que nos pedem para trabalhar na mesma, matam-nos psicologicamente por vermos o nosso esforço escorrer para um ralo de monumental incerteza. Nós, os emparedados, reduzidos à indigência mental, por sermos obrigados por um dado viciado a correr a partir de casa contra um tempo que já não existe. Teses sobre o quê, se as pessoas se veem obrigadas ao tão simples quanto absurdo ato de esperar, até que a mínima segurança seja assegurada? Excedentes de produção para vender a quem? Todo um sistema a ruir por dentro à velocidade da estupidez e nós, os emparedados, a tentar pateticamente construir tudo de novo com as mãos, ordenados por um bando de lunáticos desesperados. Uns mais, outros menos, estamos todos a ficar loucos. Pedirem-me para agir em função de uma normalidade que vejo morrer é a constatação angustiada e cabal de que não nos dignamos a aprender nada. E o sistema, o dado viciado, tem de renascer mais uma vez. Este sistema reveste-se de uma estranha aura de imortalidade, como se produzir e ser produtivo fosse o destino fatal e genético da humanidade. Não importa em que circunstâncias, é constantemente exigido aos seres humanos que suspendam a sua mortalidade, a sua humanidade, em prol da produção. Os que morrerem hão-de ser substituídos, porque dos fracos não reza a história e a vida não pode parar. E o pior é que somos forçados, por várias instâncias e vários motivos, a fingir que somos cegos à transformação a que assistimos. Somos forçados a olhar e a ouvir a palavra insuportável. Somos forçados a planear o futuro em cima de ruínas. Não nos é dado o direito da alienação. De respirar. De salvar a nossa sanidade mental ensaiando o papel de eremitas, esses a que chamamos loucos e que estão a salvo neste momento. Num simples e aparentemente inocente pedido para continuarmos a viver a mesma vida com condições diferentes, pedem-nos que aceitemos sem contestar que se impregne em nós a indignidade, a indigência, a miséria mental. E quando aceitamos a indignidade como normalidade, já nos estupidificaram. Já fizeram de nós ursos. Aos entediados, que se entretenham com as memórias passadas de um mundo que há-de continuar, mais tarde ou mais cedo. Aos trabalhadores a quem é exigido trabalhar nos trâmites da velha ordem, parem! Aos estudantes a quem é exigido estudar um mundo ilusoriamente estático quando veem pelo eco da palavra impronunciável um mundo em fatal transformação, parem! Entre nós e o tédio, a loucura. Entre nós e o sistema, a ignorância. Entre nós e a palavra, o nosso dever parar.

Artigo revisto por Ana Cardoso

AUTORIA

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Um indivíduo que o relembra, leitor, de que os livros e as opiniões são como o bolo-rei: têm a relevância que se lhe quiser dar. O seu maior talento é insistir em fazer coisas que não servem para nada: desde uma licenciatura em literatura luso-alemã, passando por poemas de qualidade mediana, rabiscos de táticas de futebol (um bizarro guilty pleasure) ou ensaios filosofico-autobiográficos, sem que tenha ainda percebido porque e para que o faz. Até porque já ninguém sabe o que é um ensaio.