Opinião

UFC Fight Night: História vs. Anti-racismo

Portugal sempre foi especialista em copiar acriticamente tudo o que vem dos Estados Unidos da América. Assim sem pensar muito, temos sitcoms, Big Brother, Shark Tank, Casados à Primeira Vista, Got Talent, Supernanny, The Biggest Loser e o The Voice. Mais recentemente, deu-nos para vandalizar estátuas. Do ponto de vista simbólico, é mais interessante. Do ponto de vista da estupidez, é ela por ela.

Começou por Cristóvão Colombo, em Boston, passou por Winston Churchill (sim, esse mesmo que salvou a Europa de um genocida racial), Leopoldo II da Bélgica e chegou a Padre António Vieira, em Lisboa. Nos dias de hoje, pelos vistos, uma piada de Bernardo Silva com um colega de equipa negro é tão grave como o tráfico de escravos África-América-Europa dos séculos XVI a XIX. Na dúvida, é racismo. Na dúvida, proíbe-se. Na dúvida, manda-se abaixo.

Ninguém coloca em causa o objetivo destes atos de arte urbana não consentida: a forma como os ocidentais aprendem história menoriza crimes contra a humanidade que foram cometidos, sendo talvez o mais grave a escravatura de negros. O problema é quando se responde à violência com violência vingativa, ainda por cima fora de contexto. Infelizmente, como em tudo na vida, perdemos a razão quando descemos ao nível do agressor, levando a cabo estes ridículos atos de estragação da via pública cuja mesquinhez deve certamente envergonhar os grandes nomes do combate ao racismo ao longo da história. E não, não estou a falar do Diogo Faro.

Por falar em história, porquê ficarmo-nos por António Vieira? Vandalizemos Afonso Henriques por violência doméstica e terrorismo religioso, vandalizemos Camões porque louvou os “descobrimentos portugueses”, vandalizemos Marquês de Pombal por ser um déspota, vandalizemos Bocage por ser mulherengo, vandalizemos Eduardo VII porque era contra o voto feminino, vandalizemos Calouste Gulbenkian porque praticava pedofilia, vandalizemos Eça de Queirós por ser um autor marcadamente misógino, vandalizemos Cesário Verde por ser um stalker de mulheres, vandalizemos Mário de Sá-Carneiro por menosprezar as classes trabalhadoras, vandalizemos Pessoa por ser monárquico e alegadamente pró-ditadura, vandalizemos até Florbela Espanca por ter uma poesia submissa em relação aos seus amados másculos.

Ou pior. E se, por azar, descobrirmos que o Eusébio não separava o lixo? Ou que o Che Guevara degolava gafanhotos às escondidas? Ou que o Malcolm X era toureiro nos tempos livres? Ou que o Karl Marx era partidário do darwinismo social? Ou que o Martin Luther King batia na mulher? Pelo sim pelo não, vandaliza-se?

O precedente está aberto. Não há dúvida de que a história precisa urgentemente de uma revisão: não pode é ser uma revisão por decreto ou indiscriminada e é por essa via que a mudança está, infelizmente, em curso. Nesta era em que já não importa o que é verdade ou o que é mentira, estamos fatalmente a reduzir a história a uma novela de bons contra maus. Os factos ficaram para trás. O que importa agora é a moral e os bons costumes, o que, para gente que se diz tão progressista, é corrosivamente irónico. Este reduzir das personagens históricas à superficialidade e bipolaridade do bom e do mau tem um nome: infantilizar a história. De que adianta criticar os aspirantes a estados fascistas, adeptos do revisionismo, da história escrita de acordo com conformidades ideológicas, da eliminação de factos em favor de versões, se caímos na armadilha da hostilidade e do extremismo por eles montada? 

Na sequência dos grafitis na estátua de Padre António Vieira, destaco duas reações. Do ex-secretário de Estado da Cultura Francisco José Viegas: “Uma geração de moralistas que se colocam acima de qualquer suspeita quer varrer a memória por decreto e por vingança; é a geração do ressentimento.”. E vou mais longe. Vou citar a minha pinhata de estimação, Francisco Rodrigues dos Santos, líder do CDS-PP, para se perceber a ignomínia: “No fundo, só estão interessados em julgar o passado à luz de ideologias presentes, recorrendo ao anacronismo e à aplicação de um critério de julgamento moral do passado. Uma nova forma de politicamente correto ou de historicamente correto.

É esta a geração de jovens que quer mudar o mundo. A geração que tem toda a razão no que diz, mas que, em vez de dizer, de argumentar, de usar o dom da palavra como se fazia nesses tempos longínquos em que a democracia e a procura do bom e do consenso prevaleciam, cala-se numa cínica e vingativa vontade de apagar a história dos opressores com uma borracha. Em vez dos argumentos, preferiu a mesma violência daqueles que tanto demoniza. Em história, queira-se ou não, não há bons e maus: há factos. Este revisionismo que se está a querer impor e que deveria ser orientado para os factos está mais preocupado em julgar os racistas mortos do que os racistas vivos e por nascer. E está, sobretudo, a esquecer-se de que a história é a mais futurista das ciências: quem pensa que apagar um racista, um homofóbico ou um machista da história está a contribuir para o bem da humanidade é alguém que nunca estudou história. É alguém que está, de forma ignorante e contraproducente, a proceder precisamente ao extermínio da história. Quem esquece repete. História sem a sua contextualização já não é bem história: é só uma comédia romântica. É revelando e desmascarando, sem idolatrias nem vinganças retroativas, e principalmente sem pessoalizar questões sistémicas, que se faz da história um incalculável serviço cívico. 

Apagar os ‘maus da fita’ da história do espetro político contrário ao nosso não é um combate a favor dos direitos humanos, mas a favor da ignorância, da hipocrisia e do falso puritanismo de que os extremos ideológicos fazem uso para proveitos próprios. E, concretamente falando de António Vieira, quando começamos a julgar um escritor por aquilo que foi como pessoa e não como artista, já passamos certos limites irreversíveis. Tenho por meu desespero que estamos a reduzir a cultura de toda a história a um mero veículo de ideologias contemporâneas. Quando um único sermão de Padre António Vieira tem mais valor humanitário do que todas estas criancices (refiro-me apenas à cruzada anti-estatueta, para que fique claro) dos últimos dias juntas.

Enfim, vandalize-se tudo. Até o bom senso.

Artigo revisto por Rita Serra

Fonte da imagem em destaque: WikiMedia Commons

AUTORIA

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Um indivíduo que o relembra, leitor, de que os livros e as opiniões são como o bolo-rei: têm a relevância que se lhe quiser dar. O seu maior talento é insistir em fazer coisas que não servem para nada: desde uma licenciatura em literatura luso-alemã, passando por poemas de qualidade mediana, rabiscos de táticas de futebol (um bizarro guilty pleasure) ou ensaios filosofico-autobiográficos, sem que tenha ainda percebido porque e para que o faz. Até porque já ninguém sabe o que é um ensaio.