Festivais de verão: há males que vêm por bem
O Governo anunciou a proibição de se realizar festivais de música até ao final de setembro. Por outras palavras, não há festivais de verão este ano. O bom senso imperou contra a inconsciência da maioria dos festivais, que mantiveram as suas datas inalteradas, prosseguindo o bom exemplo que têm dado ao longo dos anos.
Acredito que para a maioria dos jovens esta notícia tenha tido contornos trágicos. Se a isso juntarmos a criminosa não devolução pecuniária do valor dos bilhetes por parte das organizações, amarrando os festivaleiros ao seu festival com um ano de antecedência (quando ainda não é certo que os cartazes se mantenham), temos um cenário apocalíptico, como se o verão já não fosse verão sem os festivais de verão.
Ainda que não possa ir ver e ouvir uma banda que há muito tempo aguardava que viesse a Portugal (Limp Bizkit), confesso que fiquei bastante contente com esta notícia – e não, não foi por causa da preservação da saúde pública. Vou deitar cá para fora: os festivais de verão são um atentado à cultura. Pronto, está dito.
O meu foco é, naturalmente, os grandes festivais patrocinados por grandes empresas, como EDP, Galp, MEO, NOS, Vodafone e outras, ainda que a argumentação seja válida para qualquer festival. Um evento que se diz de música, mas que não reúne as condições acústicas ideais nem promove uma ligação íntima entre artista e público, não é um evento de música: é uma feira de vaidades. E não, não me coloco num palanque de falsa autoridade moral, porque não estamos mais em tempos de moralismos.
Eu próprio já fui a festivais de verão, porque efetivamente o conceito é altamente sedutor. Em primeiro lugar, devido ao fulgor financeiro das promotoras por detrás destas megalomanias. Estes eventos são capazes de atrair músicos que dificilmente noutra circunstância viriam a Portugal. Sem pensar muito, lembro-me este ano dos meus queridos Limp Bizkit, de System of a Down ou de Taylor Swift.
Em segundo, a profusão absurda de artistas e, nalguns casos, de palcos cria no pagante a sensação de que conseguirá ouvir todos. E não basta ouvir. A música, como uma das artes mais abstratas, exige um sentido de absorção e de concentração que não é possível neste tipo de formatos. E esta ideia leva-me ao termo “feira das vaidades”. Reparem como até a linguística nos trai logo à partida. Quantos dizemos “olha, fui ao Alive ouvir Pearl Jam”? E quantos dizemos “olha, fui ao Alive ver Pearl Jam”? É mais importante ver o artista do que ouvir realmente a sua música, só para depois podermos dizer à boca cheia que vimos X ou Y ao vivo.
Os festivais são uma quinta das celebridades dissimulada. Um arraial de verão parolo com sítios para tirar aquela foto para o Instagram, com jogos estúpidos onde podemos ganhar brindes e fazer publicidade a empresas milionárias, com lojas que vendem camisolas dessas mesmas empresas e com barraquinhas de fast-food que, por acaso, têm música de fundo.
Os concertos em festivais são uma espécie de concertos de marca branca: condições acústicas geralmente péssimas, um aglomerado enorme de pessoas que nalguns casos nem sequer permite ver o artista ou conjunto em palco (dando origem aos inenarráveis ecrãs gigantes), de duração mais curta do que os concertos em sala fechada, e, devido ao desfilar alucinante de artistas, sem um conceito ou um significado artístico, entretêm, e é só.
Um desenrasque não tão diferente assim das lives de Instagram com que temos sido brindados: o valor artístico e conceptual que deve guiar qualquer espetáculo de música digno desse nome é totalmente desfragmentado numa amálgama de artistas sem qualquer alinhamento lógico entre si. Em limite, não música, mas uma contrafação de música a fazer de conta que é música porque até tem som e melodia harmoniosa, quando a música é, ou deve ser, muito mais do que um entretenimento de carneiros.
É criada no pagante a ilusão de que vai ver muitos artistas por um preço mais baixo do que se pagasse individualmente por cada um, o que é objetivamente verdade. No entanto, trata-se de uma falácia ardilosamente montada, dado que é fisicamente impossível ouvir todos, no caso de haver vários palcos em simultâneo. E mesmo ouvindo todos, o sentido de unidade da obra de arte é completamente boicotado por este formato em que a quantidade é mais importante do que a qualidade.
No fundo, pagamos dezenas ou centenas de euros para ter a possibilidade de assistir a concertos de artistas de que nunca ouvimos falar e a que não vamos certamente assistir, porque o que nos leva a comprar o bilhete diário ou geral é um ou um conjunto de artistas. Os restantes é como se nos fossem dados de borla, um bónus por acréscimo, quando só servem para encher o cartaz e criar a sensação de que é um bom negócio pagar um bilhete que custa cem ou duzentos euros.
Os festivais de verão, ou pelo menos os grandes, são um modelo de negócio semelhante ao dos hipermercados: comprar em grandes quantidades uma enorme variedade de produtos, fazendo com que o cliente se dirija apenas a um local para usufruir de todos os produtos, ao invés de se deslocar a várias pequenas empresas que comercializam os vários tipos de produtos que o tubarão centraliza no mesmo lugar.
Traduzindo para a realidade descrita, as pessoas preferem poupar dinheiro durante o ano, abdicando de concertos individualizados, em condições acústicas e artísticas muito mais favoráveis, para comprar o bilhete geral de um festival onde, em dois, três ou quatro dias, concentram uma dose de concertos absurda e impossível de absorver na sua completude.
É a lei das economias de escala em todo o seu esplendor, só que neste caso em concreto vai apunhalando, ano após ano, o espírito elevado e artístico que a linguagem musical tem e que merecia mais respeito. Se pudermos adiar a morte da música ao vivo por um ano, então assino por baixo, e com grande rejúbilo, o cancelamento dos festivais de verão.
Madonna, com a sua tour do álbum Madame X, já mostrou o caminho para que se recupere a aura dos concertos ao vivo. Entre a elitização da música de qualidade ou a democratização da música sem qualidade, entre a arte de primeira e a arte de segunda ou terceira categoria, prefiro que a verdadeira arte se salve. Para alimentar celebridades, invejas, vaidades e contrafação de cultura, já nos chega o Instagram, os reality shows, os programas de talentos, Hollywood e a Netflix.
Artigo revisto por Ana Rita Sebastião.
Fonte da imagem em destaque: Pixnio
AUTORIA
Um indivíduo que o relembra, leitor, de que os livros e as opiniões são como o bolo-rei: têm a relevância que se lhe quiser dar. O seu maior talento é insistir em fazer coisas que não servem para nada: desde uma licenciatura em literatura luso-alemã, passando por poemas de qualidade mediana, rabiscos de táticas de futebol (um bizarro guilty pleasure) ou ensaios filosofico-autobiográficos, sem que tenha ainda percebido porque e para que o faz. Até porque já ninguém sabe o que é um ensaio.