A quem tenta a quarentena
Quarentena não são 40 dias, mas bem parece. E olha que vamos apenas na primeira semana! Talvez não haja o conceito de tempo quando não tens de apanhar um comboio, de chegar à paragem do autocarro, de alcançar a estação de metro. De certo que não se sabe que horas são quando não há uma máquina de café para visitar constantemente.
Fiz um stock de comida suficiente para três semanas, e este durou uma noite a acompanhar as atualizações dos jornais sobre a pandemia. Ou será que foram duas? O que importa é que agora há apenas barritas de cereais na minha despensa, e eu dispenso sair de casa enquanto os mercados estiverem contaminados com desespero. Compraria comida pelo delivery, mas como é que explico mais uma encomenda de bolonhesa? Os vizinhos vão logo perguntar por onde andei estas férias, e eu vou ter de dizer que a minha única febre milanesa é a dos bifes.
Sinto que agora conheço muito melhor a minha casa – a segunda, porque a faculdade fechou. É incrível! Tenho um quarto, que é como um gabinete, mas tem uma cama. Há uma sala, que é tipo uma associação de estudantes onde ninguém me acorda quando cochilo no sofá. Envio mensagens apenas nos corredores, porque assim resolvo o problema de neles não haver burburinho.
Agora que estou trancada, decidi ver mais sobre o que é a minha cidade. Até andei a perguntar aos meus colegas o que é que estes gostam de fazer quando não estamos em salas de aulas ou em filas de reprografias. Para o meu espanto, há parques, praias, miradouros, shoppings. Quem é que sabia? E existem concertos, pelos vistos. Mas não te empolgues, porque foram cancelados. Há peças de teatro, que são tipo filmes feitos à tua frente. Ah, estas também foram cancelados. Se calhar vale mais a pena mantermo-nos nos streamings, que são a opção higiénica.
No outro dia fui até à janela aplaudir os profissionais de saúde e, por recomendação médica, passei álcool gel três vezes seguidas ao fechar a janela. Fiquei num loop, a limpar as minhas mãos e o beiral de alumínio. Da próxima vez, espero que indiquem luvas para a manifestação. E irá haver mais palmas, se calhar até com um upgrade, um instrumental. Noutro dia, acrescentámos também um coro em uníssono por todas as janelas. Mas para isso precisamos primeiro de encontrar máscaras que não abafem a voz da nação.
Artigo revisto por Carolina Marques
AUTORIA
Michelle tem 20 anos e faz muitas perguntas desde que se conhece por gente. Criou o primeiro site numas férias de verão enquanto criança e apaixonou-se por escrita e fotografia. Algum tempo e vôos internacionais depois, entrou em Jornalismo na ESCS, a escolha acertada para si. Não limita os seus assuntos, secções e cantinhos a visitar. Teve na Magazine um megafone enquanto Editora de Opinião.