Dá match com a tua renda
Vê bem: há assuntos sobre os quais não posso falar. Não sei nada acerca de como são construídos os satélites, ou os grandes cruzeiros, ou mesmo as bolhas imobiliárias. Quando vou contratar um plano telefónico, felizmente não preciso de passar por uma prova de que peça vai para onde no emissor da companhia. O colaborador não me explica quais são os raios que vão levar os meus tweets daqui para além da estratosfera, e depois de volta. Não é preciso. Ele está lá, e nós cá. Isso e umas dezenas de euros bastam para este relacionamento dar certo.
Não acontece teres de, no meio do teu caminho até ao trabalho, indicar a um turista em que lado exatamente do céu se encontra o satélite da sua operadora. Quer dizer, não frequentemente. Não é comum que, num primeiro encontro, o menu apenas se abra se for dita a equação responsável pela conexão virtual que permitiu o match.
E, se para o aniversário de casado destes dois amantes for decidido que a celebração será no alto mar, a agência de viagens não irá dar-lhes um teste de conhecimento sobre onde está cada engrenagem, manivela, porca e parafuso da embarcação. É quase impossível que o capitão em pessoa os visite e, sob a condição de terminar ali mesmo a boda do casal, os testes sobre a potência do motor do cruzeiro.
Para felicidade desta mesma família – sim, agora o nosso exemplo inclui filhos -, ao procurar uma casa para viver, não são constantemente pedidos para dissertarem acerca do fenómeno da bolha imobiliária. Imagina só que descabido seria! Os agentes imobiliários, por sua vez, também não vão explicar-lhes o porquê de este T0 por estrear custar o mesmo que um T4 custava há uns anos atrás.
Guarda as tuas questões, mas não o teu dinheiro. Com arrumações ao estilo nórdico e as técnicas de organização da Marie Kondo, qualquer espaço irá acomodar-te. Podes sempre decidir cortar os teus planos de televisão e telemóvel. Adiciona estes ao passado no qual as linhas fixas de telefone se encontram. Economiza na rede, pois apanhaste o seu match. Já agora, liberta espaço no teu telemóvel também e apaga a app.
Mas falando a sério: o que mais podes querer? Um quarto para as crianças? Uma máquina de lavar a roupa? Ah, agora também vais exigir que tenha janelas, portas e piso? Luxúria! Podes sempre partir a família por alguns quartos de alojamento local, mas toma cuidado com o local que escolhes para não acabares na zona cara. Perdão: na exorbitante, decepcionante, valorizada em cinco salários mínimos por minuto respirado dentro de uma divisão de dois metros quadrados.
Eu não posso falar de alguns assuntos. Não posso explicar-te porque é que várias famílias têm de escolher entre segurança, alimentação e renda. Não sou eu que vou dar-te a base teórica por detrás do preconceito dos sistemas de financiamento. Não tenho como te dizer porque alguns simplesmente não recebem crédito e outros cobram a sobrevivência em cada pequena prestação. Não vou estar aqui a dizer disparates sobre as acertadas decisões que levam uns a lucrarem em cima do teto dos outros. Acima do teto geral.
Vê bem, eu não posso. Não compreendo. Adoraria que alguém me explicasse o porquê disso. Ou, mais fácil ainda, inventem um cruzeiro até ao satélite mais próximo, onde a caução deve ser só de um mês.
Artigo revisto por Mariana Coelho
Fonte da imagem em destaque: Reuters/Charles Platiau
AUTORIA
Michelle tem 20 anos e faz muitas perguntas desde que se conhece por gente. Criou o primeiro site numas férias de verão enquanto criança e apaixonou-se por escrita e fotografia. Algum tempo e vôos internacionais depois, entrou em Jornalismo na ESCS, a escolha acertada para si. Não limita os seus assuntos, secções e cantinhos a visitar. Teve na Magazine um megafone enquanto Editora de Opinião.