Coisa Mais Linda
Numa das mais recentes produções brasileiras da Netflix, Coisa Mais Linda (com nome em referência à música Garota de Ipanema), a bossa nova e o empoderamento feminino interligam-se na trajetória de quatro mulheres que poderiam muito bem ser contemporâneas das atuais cariocas. A série passa-se no Rio de Janeiro da década de 1950, onde o centro urbano só estava desenvolvido na boémia.
É neste cenário divino que conhecemos Malu (Maria Casadevall), Adélia (Pathy Dejesus), Thereza (Mel Lisboa) e Lígia (Fernanda Vasconcellos), e as diferentes formas como estas conquistam – ou tentam conquistar – o seu espaço.
Tudo começa com Malu, uma socialite de São Paulo que viaja para o Rio de Janeiro, onde iria encontrar o seu marido na inauguração do restaurante que estavam a abrir em conjunto. Descobre, porém, que ele não só não havia feito o que fora combinado e o estabelecimento estava a cair aos pedaços como também tinha fugido com todo o seu dinheiro.
A protagonista não desiste do seu sonho de abrir um lugar onde as pessoas possam combinar boa comida, companhia e música, mesmo se isto significar ser deserdada pelo pai e ficar afastada do filho. É em parceria com Adélia que consegue superar muitas das dificuldades com as quais se depara: a falta de dinheiro ou até o simples facto de serem mulheres numa época em que o mundo era regido pelos homens.
Malu apaixona-se pela bossa nova enquanto se encanta também por quem lhe apresentou este género musical, Chico (Leandro Lima). Até a protagonista conseguir descobrir o que a poderá ajudar no seu novo negócio ou o que é romance, a mãe de Carlinhos erra muitas vezes.
Aquilo pelo que Adélia passa, porém, nunca poderia ser plenamente compreendido por Malu. Enquanto que a paulista veio de uma família rica, Adélia teve de conquistar tudo, para si e para sua pequena filha, sozinha e sem reclamar daquilo pelo qual os empregadores racistas a faziam passar.
Numa sociedade mal-acostumada e com os seus hábitos históricos, a cor de pele de uma mulher como Adélia significava que esta seria vista como um objeto em relação a outras mulheres. A vida na favela era precária e perigosa, atraindo alguns para o morro apenas pelo eventual charme das rodas de samba, livres de preconceitos.
Mesmo Lígia, amiga de longa data de Malu, quando encontrou Adélia pela primeira vez, tratou-a como aprendera com a conservadora elite brasileira. Ela era casada com Augusto (Gustavo Vaz), o homem que amava, e achava que muito do bom comportamento de uma esposa passava por acatar a mal criação do marido.
Pela glória e ego dele, engolia o seu sonho de ser cantora e maquilhava as verdadeiras marcas do relacionamento. Contentava-se com o mero papel de acessório de Augusto na sua trajetória até à presidência da República, até porque a palavra “abuso” não existia.
Thereza é, talvez, a personagem com a mentalidade mais próxima daquela que as mulheres de hoje em dia têm. Cunhada de Lígia, viveu em França e partilhava as ideias que eram comuns em Paris, mas radicais no Rio de Janeiro. Vivia em pé de igualdade com o marido, num relacionamento de mútua admiração que não deixava de ter os seus altos e baixos. É ela quem traz a maior parte da consciencialização de que as outras protagonistas precisam – a voz do futuro que elas precisavam ouvir.
É difícil de dizer que esta série trata de problemas resumidos a épocas passadas quando a realidade global é que mulheres ainda precisam diariamente de comprovar aos homens que acham ser seus donos que elas têm capacidades próprias. Malu, por exemplo, viveu a sua vida inteira de maneira submissa, ora como filha do seu rico pai ora como esposa de Pedro.
Apesar de ser conhecido pela forma como as mulheres dançam vestidas com as roupas de carnaval ou pelos biquínis que marcam o verão, o Rio de Janeiro não é, na contemporaneidade, um espaço de plena liberdade para as suas cidadãs. O retrato feito pela Coisa Mais Linda ao longo dos seus 7 episódios é tão belo na fotografia e caracterização quanto fiel à luta pela igualdade de género.
Esta temporada de estreia acaba de uma maneira que apenas uma segunda temporada pode resolver. E, felizmente, não seremos deixados a especular: a Netflix anunciou logo após o lançamento de sucesso de Coisa Mais Linda que a série terá uma segunda etapa, com seis novos episódios de 50 minutos cada.
Artigo revisto por Rita Asseiceiro
AUTORIA
Michelle tem 20 anos e faz muitas perguntas desde que se conhece por gente. Criou o primeiro site numas férias de verão enquanto criança e apaixonou-se por escrita e fotografia. Algum tempo e vôos internacionais depois, entrou em Jornalismo na ESCS, a escolha acertada para si. Não limita os seus assuntos, secções e cantinhos a visitar. Teve na Magazine um megafone enquanto Editora de Opinião.