“Já não sou quem era. Já não espero ser quem fui.”
Há 7 anos, Bartolomeu estava na sua cela, deitado, a pensar “Como vim aqui parar?”. Assim que entrou para a prisão deixou de viver; passou apenas a sobreviver.
Hoje, por volta das 5 da manhã, Bartolomeu sai de casa e corre até ao autocarro, a fim de chegar a horas ao trabalho. É cedo e sente-se a brisa fresca, mas é muito melhor do que estar dentro da cela. O caminho de autocarro não é longo, mas é o suficiente para ter tempo de visitar o seu passado através de memórias.
Há 7 anos Bartolomeu foi detido. Ficou isolado, de costas voltadas com todos, principalmente consigo próprio. Foram dias e dias em que pouco falou, a sua única companhia eram os pensamentos. Se antes não tinha qualquer perspetiva para o futuro, naquele momento o seu mundo acabou: “Parece que tudo ficou escuro. Não conseguia pensar em mais nada. Já não era ninguém”, confessou.
Agora tem a sua própria rotina. Quando sai do trabalho, almoça, estuda e depois descansa no tempo em que pode; às 19h está novamente a sair de casa para conseguir concluir os estudos. Os momentos que passa sozinho são hoje de calma. Há quase uma década, os momentos de solidão destruíam Bartolomeu. Mesmo fora da prisão, o pesadelo continuou. Aliás, piorou: “Preso estive enquanto estive detido. E preso estive também enquanto estive fora. O homem sai da prisão, mas a prisão nunca sai do homem.”
Nasceu em Angola, em 1987. Era uma criança feliz, a viver uma infância normal. Por obra do destino, o menino de 7 anos sofreu um grave acidente. Foi atropelado por um vizinho enquanto brincava na rua com as outras crianças do bairro. Quando o carro o colheu, Bartolomeu caiu e foi arrastado com a cara na estrada, ficando gravemente ferido no olho esquerdo. Esteve hospitalizado durante meio ano. Quando tudo parecia melhorar e finalmente voltou para casa, surgiu um coágulo de sangue no cérebro que o fez voltar para o hospital. A sua infância foi passada com médicos e enfermeiros. “Tive um crescimento num ambiente não propriamente saudável. Cresci no hospital pelo acidente que tive quando era criança, e depois fui passando mais tempo com as enfermeiras do que com a família.”, disse. A viver entre o hospital e a escola, só voltava para o colo da mãe ao fim-de-semana. Faz parte de uma família numerosa; tem 11 irmãos, com quem hoje não mantém contacto.
A infelicidade que lhe bateu à porta não se ficou pelo acidente: no sítio que devia ser o seu porto de abrigo, os seus irmãos faziam de tudo para o entristecer ainda mais: “Chegou a uma altura em que eu não aguentei mais as acusações dos meus irmãos de coisas que eu não fazia só para terem mais atenção da nossa mãe…não aguentei a pressão e tentei envenenar-me.” Pouco depois do acidente perdeu o pai, mas os anos que viveu com ele também não foram felizes. “Apanhava toda a pancada, mesmo ainda pequeno, antes de ser atropelado.” Bartolomeu revelou que a relação com a família nunca foi boa, e que a única pessoa pela qual sente respeito e carinho é a mãe.
O vício do álcool surgiu quando ainda era uma criança de 10 anos. Começou a beber porque gostava do sabor doce, mas tornou-se um escape para a situação que vivia em casa: “Se enquanto estivesse a beber apanhasse uma decepção, eu parava de beber. Se pelo contrário não estivesse a beber e apanhasse uma decepção, eu voltava a beber. Era uma troca normal para mim. Tornou-se num círculo vicioso.”
Após várias tentativas, os médicos chegaram à conclusão de que não tinham meios para solucionar o seu problema ocular em Angola. Em 1998, através de uma junta médica, Bartolomeu foi para a África do Sul. Infelizmente, neste novo país também não o conseguiram ajudar e, 10 anos depois, em 2008, chegou a Portugal. Veio por motivos de saúde, que continuam a persegui-lo e a obrigá-lo a ter o seu olho tapado, e acabou por cá ficar até hoje por motivos judiciais. Vive em Portugal há 14 anos. Metade deste tempo passou-o com a sua liberdade restringida. O consumo de álcool aumentou de ano para ano, tornando-se num problema: “Eu já não bebia porque gostava, bebia por necessidade. O álcool já me estava no sangue”.
A personalidade de Bartolomeu começou a formar-se em torno do álcool. Se não bebesse não sabia quem era: “Não sabia qual era o sentido de viver. Vivia por viver. Dia após dia, ia vivendo a vida só assim. Sem projetos.” Quando bebia sentia-se feliz, mas no período de ressaca Bartolomeu tornava-se agressivo, era como se tivesse duas pessoas diferentes a viver dentro de si. As festas tornaram-se cada vez mais frequentes e aí o consumo de cocaína chegou: “Eu consumia álcool e pó. Mas ia mais para o álcool porque sentia mais o gosto… o pó era só de vez em quando, quando ia para as discotecas”.
No início de 2015 esteve detido durante três meses. Relata aquele período como uma altura em que não sentia nada: “No momento em que me meteram as algemas nas mãos já sabia que a minha vida tinha acabado… quando estava lá dentro já não tinha mais nada a perder.”. No entanto, o tempo que passou na prisão não foi o que mais lhe custou, nessa altura a indiferença apoderou-se dele. Foi quando saiu que percebeu que ainda não se sentia em liberdade. A partir daquele momento Bartolomeu só tinha a certeza de uma coisa: havia estragado a sua vida.
Quando saiu da prisão o medo tomou conta de si, vivia com receio de ter outro deslize que o levasse novamente para lá. Desenvolveu uma depressão, vivia com receio das pessoas e das suas intenções. Se o problema era voltar para a prisão, a solução era não fazer nada de errado, e foi isso que Bartolomeu tentou fazer. Durante algum tempo viveu discretamente. O medo falava mais alto e os seus erros pareciam ter ficado numa vida passada. Mas esta atitude cautelosa não durou, e foi pouco tempo depois de ter saído da prisão que foi parar à rua.
Os problemas com o álcool voltaram e a bebida era outra vez a sua melhor companhia. As recaídas eram frequentes, mesmo quando queria largar a garrafa não conseguia, por mais que tentasse – depois de um dia sem beber, foi parar ao hospital com uma convulsão, mas a pressão do consumo, na semana seguinte, falou mais alto. Viver na rua só piorou a situação de Bartolomeu: “Eram consumos excessivos, maldades também. Mesmo sabendo que estava com uma (pena) suspensa já não tinha medo de voltar. Já que estava no poço vou só cavar mais para ver se me afundo”.
Bartolomeu foi chamado ao tribunal, o risco de voltar à prisão era cada vez maior. Se cometesse outro erro a pena suspensa de 7 anos seria passada na cela que já conhecia tão bem. Até que numa noite foi abordado por uma assistente social: “Queres mesmo morrer aqui, na rua, sozinho?”, a pergunta mexeu com a sua cabeça. Percebeu que a vida não podia ser aquilo, que já bastava daquele sofrimento. Tinha de tomar um rumo na vida e, na manhã seguinte, aceitou a ajuda. “Eu tive de ficar 15 dias nas Taipas¹. Quando saí fui diretamente para a associação Minha Casa². Depois de uma semana já tive alguma esperança no meu futuro.”, disse. Iniciou um tratamento para o alcoolismo e à medida que melhorava só conseguia pensar nos projetos que tinha para a sua vida dali para a frente. Bartolomeu mostrou-se muito grato pela oportunidade que lhe foi dada: “Lá aprendi muita coisa… aprendi a tolerar, a amar as pessoas novamente, a compreender e a não julgar, a entender e a ajudar.”
Quando terminou o tratamento do alcoolismo, Bartolomeu pediu para ser transferido para outra associação, por ter medo de não conseguir resistir às tentações do mundo real. Surge aqui O Companheiro³, que o ajudou na sua reintegração na sociedade e que o apoia até hoje. Lá tinha hora para sair, para entrar, até para se levantar. Bartolomeu voltou a ter um quarto só para si, um emprego e uma rotina. “Eles reintegram o pessoal, arranjam atividades ocupacionais, e depois, devagar, voltamos a ter uma vida”, explicou. Agora, Bartolomeu já não vive a vida à margem da sociedade. “Já não sou quem era. Já não espero ser quem fui.”, confessou.
“Uma noite saí para ver as estrelas, meti a mão no bolso e os fones nos ouvidos e fiquei a ouvir música. Fui andar até Belém e foi aí que caí em mim, e pensei: muito obrigado, valeu a pena ter passado por isso.”. Embora tenha vivido quase toda a sua vida sem ambições, é possível ver na sua expressão facial que tem esperança no futuro. Bartolomeu está a tirar um curso de técnico de informação e gestão de redes. Espera, num futuro próximo, entrar numa formação de técnico de eletricidade industrial. Podia ter tido um futuro promissor, conta que gostava muito da escola, especialmente da área dos números, e que até tinha boas notas. É triste ver o quanto o futuro de alguém depende do ambiente que o rodeia. Bartolomeu cresceu num meio que não lhe providenciou bases para quando crescesse. Não teve o apoio da família, também não teve muitos amigos. Cresceu à mercê do destino e de tudo o que lhe aconteceu.
Ainda assim, conseguiu dar a volta à sua vida e hoje tem um sonho. Com os dedos a tamborilar na mesa, lança-nos um sorriso tímido, fecha o seu olho como se imaginasse o cenário, e diz: “O meu sonho é viajar pelo mundo. Pegar numa mochila como os turistas usam e ir sem destino, sem planear. Também quero ir ver um show da P!nk. Se não for da P!nk, vai ser da Lady Gaga!”. E talvez um dia pegue na mala e volte à terra onde nasceu. Ou talvez vá rumo ao desconhecido e seja o homem que sempre quis ser. Talvez seja um homem livre.
Bartolomeu esfaqueou um homem. Foi condenado a 7 anos de liberdade condicional pelo crime de tentativa de homicídio.
¹ Centro de Taipas – Unidade da Divisão de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, especializada na abordagem multidisciplinar em dependências e comportamentos aditivos. Para além da vertente do Tratamento também estão ativos nas áreas da Reinserção, da Prevenção e da Redução de Riscos e Minimização de Danos.
² Associação Minha Casa – A Associação “A Minha Casa” tem por objectivo promover o tratamento de vanguarda na área das adições (álcool/drogas/fármacos) num ambiente ético e profissional.
³ O Companheiro – Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) é uma comunidade de inserção, sem fins lucrativos e de utilidade pública, que intervém a nível psico-sócio-profissional: acolhimento, inserção orientação, acompanhamento e gestão de soluções dinâmicas e únicas, focadas na necessidade da pessoa.
Fonte da capa: Filipa Amaro
Reportagem feita no âmbito da unidade curricular Laboratório de Jornalismo III
Reportagem feita por Filipa Amaro, Inês Policarpo e Mariana Madeira
AUTORIA
Quase ingressou no curso de cinema aquando do início da sua jornada no ensino superior, porém, à última hora, decidiu que afinal queria enveredar pelo mundo do jornalismo. Veio da área dos números, mas após a sua entrada na ESCS Magazine - que tomou como um desafio - descobriu um gosto imenso pela escrita. Agora, enquanto editora da Secção de 7ª Arte, ambiciona proporcionar o conforto que sentiu quando entrou na Magazine a todos aqueles que, tal como ela, são apaixonados por cinema.
Quando era pequena a Inês queria ser decoradora de interiores. Hoje, está a tirar uma licenciatura em Jornalismo. A vida tende a surpreendê-la, mas ela não se deixa surpreender. Curiosa, otimista e sempre disposta a ajudar, a comunicação veio dar uma nova perspetiva à vida de Inês: venha ela de que forma for, será sempre a melhor maneira de estar conectada com o mundo.
Maluca por organização e stressada por natureza, é na escrita que a Mariana encontra o seu momento de tranquilidade. A verdade é que ela escreve e fala demasiado. Agora tem de conjugar a nova função de editora da secção de Moda da ESCS Magazine com o seu curso de Jornalismo enquanto ainda perde pelo menos uma hora do seu dia a tratar do seu cabelo – existem prioridades, por favor. Será a Mariana capaz de tal proeza? Esta futura jornalista de 19 anos está pronta para o desafio!