Cinema e Televisão

Justiça Poética

Barry Jenkins produz uma verdadeira obra-prima contemporânea. Ao longo de 110 minutos acompanhamos o percurso de Chiron (interpretado por três actores diferentes consoante a faixa etária em que a personagem se encontra) e a sua luta contra o bullying e pela aceitação da sua orientação sexual. Oriundo de uma família afro-americana de escassos meios financeiros, Chiron esforça-se por resistir aos maus-tratos da mãe (entregue ao crack), e à constante perseguição das crianças do bairro pobre onde nasceu. Um filme sobre a descoberta de identidade de uma América renegada e assolada pelas drogas.

“A um certo momento da tua vida tens de ser tu a decidir o que queres ser, não deixes que os outros decidam por ti”, diz Juan (interpretado por Mahershala Ali) a um pequeno Chiron (Alex Hibbert). A frase associa-se de forma perfeita a todo o filme, é essa a vitória de Barry Jenkins – a de construir uma narrativa de forma genuína sem cair no facilitismo do filme convencional. Seria tão fácil pegar no argumento e, piscando o olho às grandes produtoras, toldá-lo a um melodrama hollywoodesco daqueles que vemos com tanta facilidade e que quase roubava a tão merecida estatueta de melhor filme do ano, sob a forma de musical solene, ao filme de Jenkins.

A grande vitória de Moonlight é a de dar ao espetador a constante sensação de desconforto, de ausência de filtros- aqueles que o cinema americano tanto se esforça por apregoar ao seu público. Estrutura narrativa em três actos que correspondem a três tempos da vida da personagem principal, é impossível desassociar Moonlight de outras obras que marcaram o indie dos últimos anos como Boyhood ou American Honey e, curiosamente o tema é semelhante- a descoberta da identidade. O interesse de Jenkins é o de filmar o individuo, nunca a sociedade que o rodeia: não caí no facilitismo de criar uma crítica social envolvente, não é isso que a história pede e não é para isso que somos transportados em Liberty City – local onde se passa boa parte da trama. É toda uma obra de amor e da sua descoberta.

É impossível esquecer a cena em que Juan (interpretado por Mahershala Ali) ensina um pequeno Chiron a nadar. De uma beleza surreal, crua, nua, sem oportunidade de um julgamento rápido; não há pressas. É a câmera, os actores e o espaço que estes ocupam que domina tudo, havendo tempo para a contemplação do momento. É Uma das grandes cenas produzidas no cinema americano nos últimos anos, conduzida por Ali de forma sublime, confirmando-o como um dos mais talentosos actores norte americanos da actualidade. Juan transporta ao longo do filme um amor paternal tocante.

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Um particular destaque para a banda sonora composta por Nicholas Britell que aparece nos momentos certos, evitando o ruído e desconforto sonoro ao espetador. Sempre próxima do êxtase, como em The Middle Of The World, tema que acompanha parte da obra ou de uma tristeza profunda como em Moonlight Suite. E no fim, no último ato, não há lugar para a redenção; Chiron cresceu, tornou-se num homem, um dealer, mas não abandonou a infância escura que deu mote a boa parte do filme.

Moonlight é um “salva vidas” do cinema contemporâneo americano, a única resposta possível ao marasmo criativo que Hollywood teima manter. O cinema não é de efeitos especiais, mas sim de momentos de contemplação e dos actores que o apresentam. O Óscar de melhor filme do ano e a forma como foi revelado são de uma justiça poética de que o cinema americano precisa há muito.

AUTORIA

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Olá, sou o Luís, tenho 27 anos e nasci em Cascais. Vivo desde, quase sempre, em Sintra e sinto-me um Sintrense de gema.  Adoro cinema - bem, adorar não é a palavra adequada, venerar parece-me um adjetivo mais justo -  e sou também obcecado por política e relações internacionais. Gosto também muito de desporto.