Enjaulados
Em Gus Van Sant há uma espécie de “fascínio insigne”, justificado pela sua capacidade de reinvenção constante que o afasta do papel de cineasta preso a uma “formalização“ na hora de filmar. Essa liberdade permite-lhe filmar coisas bastante diferentes: desde o refilmar obsessivo, passo a passo, do monstruoso Psycho de Hitchcock ao irreverente Milk que deu a Sean Penn o papel de uma vida. Há também o incompreendido Finding Forrester, que, apesar dos vários pontos de contacto, consegue ter um “campo aberto” diferente do Caminho de Idaho. Elephant, Palma de Ouro em Cannes, tem não só a capacidade de reinvenção de Sant, mas também uma admirável resistência a filmar a obra de forma paternalista.
A sinopse da história é claramente inspirada no massacre de Columbine: vai buscar tanta coisa ao fatídico dia 20 de abril de 1999, no Colorado, Estados Unidos da América, que é impossível dissociar um do outro. Contudo, não é uma transcrição total dos incidentes, uma vez que Van Sant aproveita a “relativa independência” da narrativa. Isso permite-lhe jogar com outros temas, como por exemplo: o problema da bulimia, relações entre pais e filhos ou a ridícula facilidade em obter uma arma nos EUA.
Estamos encurralados com as personagens. Van Sant avança na narrativa para, de repente, recuar nela, deixando-nos com uma ansiedade crescente. É um filme terrivelmente “cru”, nem dando hipótese de defesa. Só vimos os primeiros tiros perto da hora do filme. Elephant está condensado numa magnífica 1h20, mas já os sentimos antes – a antecipação é já parte do terror que se vai instalar depois. Para isso não são precisos diálogos grandes. É no silêncio das personagens que se joga uma boa parte do impacto da obra.
Seria fácil o filme concentrar-se apenas no massacre e no formalismo das cenas de terror, mas não. É dado a conhecer ao espectador diferentes mecânicas internas no espaço da ação, como as relações entre alunos e pais, alunos e professores ou alunos e alunos. As personagens não são caricaturas – elas estão envoltas numa grande densidade que Gus Van Sant se “diverte” a divulgar, sem mostrar tudo, mas a mostrar muito. Há momentos que mostram essa densidade: a magnífica cena, na qual três adolescentes recorrem a uma casa de banho da escola para “vomitar” o seu almoço; há ainda a cena inicial da condução de um pai bêbado e “perdido” na sua relação com o filho.
E os autores do massacre? Num filme “normal” seriam explorados até a uma exaustão que lhes tiraria o impacto em cena, mas aqui são cuidadosamente mostrados ao espectador. É apresentada a sua “iniciação”, mas é recusada qualquer caricatura. Como ignorar a magnífica cena em que um dos atiradores toca piano num crescendo de emoção? Uma antecipação do que estaria para vir. Há ainda o momento de revisão do plano de ataque à escola. Uma das personagens vira-se para a outra e não hesita: “O mais importante é divertires-te”.
Gus Van Sant dá-nos uma aula de cinema. A forma como filma o tiroteio é “crua” e cruel, mas necessária. A certa altura uma das personagens diz: “Nate, levanta-te” – isto depois de Nate ter sido baleado. É aqui demonstrada a incredulidade ao início do ataque; é tudo tão natural, tão real, é cinema quase que palpável.
E no fim voltamos aos céus, eles que estiveram presentes no início do filme, num desfecho sublimemente feito.
Fonte da capa: IMDb
Artigo revisto por Beatriz Merêncio
AUTORIA
Olá, sou o Luís, tenho 27 anos e nasci em Cascais. Vivo desde, quase sempre, em Sintra e sinto-me um Sintrense de gema. Adoro cinema - bem, adorar não é a palavra adequada, venerar parece-me um adjetivo mais justo - e sou também obcecado por política e relações internacionais. Gosto também muito de desporto.