Fátima: 11 mulheres caminhando no real
João Canijo assina uma reflexão cinematográfica que roça a perfeição, jeito on the road, e que o confirma como um dos mais talentosos realizadores europeus.
Como resumir “Fátima”, a mais recente obra do realizador português, da forma mais simples possível: Um grupo de 11 mulheres em peregrinação desde Trás-os-Montes até ao Santuário de Fátima, ao longo de mais de 400 quilómetros. Tinha tudo para dar errado: primeiro a complexidade de filmar 11 atrizes sob o risco de criar uma saturação visual e sonora ao espetador; depois o pegar num assunto sempre polémico – a fé. Canijo contorna tais problemas e dá-nos não aquilo que queremos ver, mas sim aquilo que merecemos ver.
A certa altura, num dos diálogos mais intensos do filme, Sara Norte diz para Márcia Breia: “Não sou santa, não sou santa, nem quero ser”. O filme de Canijo não mostra mulheres imaculadas ou beatificadas pela dor. Melhor do que cair nessa tentação, dá-nos as confrontações e dúvidas desse grupo de peregrinas. A sinceridade está presente ao longo do filme, desarma-nos e faz-nos questionar. Desmonta a motivação daquelas mulheres e o que as leva a tanta privação em nome da fé. Dá-nos, em troca de nada, a sua intimidade e o seu silêncio.
É nos diálogos, não fosse Canijo herdeiro de Leigh, que o filme ganha uma dimensão diferente. Canijo já nos tinha habituado a diálogos simples, mas terrivelmente cruéis em “Sangue do Meu Sangue” (talvez a obra mais completa do cinema português nos últimos 30 anos e um dos grandes filmes do século XXI) ou em “Ganhar a Vida”. Em “Fátima” transporta essa crueldade para as conversas, em jeito de sussurro, na caravana que acompanha e apoia as peregrinas. Para essa dimensão e ferocidade de sinceridade contribuem as magníficas Rita Blanco e Anabela Moreira (atrizes fetiche de Canijo) que aguentam e prolongam a carga dramática da sua peregrinação com uma simplicidade tocante. Blanco passeia classe ao longo de todo o filme, com um à vontade soberbo. Claramente no olimpo da representação portuguesa, ganha, com avanço, todas as cenas do filme com um toque de subtileza desarmante. Já Moreira traz uma fúria inquietante, como numa das muitas cenas em que caminha sozinha pela estrada – partilhamos da sua dor e questionamos a sua jornada, tal como questionamos a jornada das outras 10 mulheres.
O filme de João Canijo explora a carne, a dor, a angústia, o sofrimento. É uma pedra no charco no mainstream do cinema português e no popularucho em que caímos nos últimos anos. É um dos filmes do ano e é a prova de vitalidade de um realizador que, mais do que cinema de autor, faz grandes filmes.
AUTORIA
Olá, sou o Luís, tenho 27 anos e nasci em Cascais. Vivo desde, quase sempre, em Sintra e sinto-me um Sintrense de gema. Adoro cinema - bem, adorar não é a palavra adequada, venerar parece-me um adjetivo mais justo - e sou também obcecado por política e relações internacionais. Gosto também muito de desporto.