Cinema e Televisão

O Filme dentro do Filme

A obra final de Orson Welles é um filme assombroso, vulnerável e incrivelmente bonito; nele ensaia a sua morte cinematográfica.

Durante muito tempo, o filme O outro lado do vento ganhou contornos de obra maldita: as filmagens começaram em 1970 e terminariam apenas sete anos depois. Para além disso, sem nunca conhecer uma edição final e envolto em disputas legais sobre os direitos de produção, o filme acabou por ver a sua estreia cancelada. Do mesmo modo, mais de mil rolos de filmagem, equivalente a 100 horas de gravação, foram abandonados num cofre em Paris até março de 2017; altura em que os produtores Frank Marshall, que trabalhou na produção inicial do filme, e Filip Rymsza iniciaram os esforços para a conclusão do trabalho de Orson Welles. Apesar de nenhuma produtora convencional de cinema ter agarrado a complexa obra para levá-la às salas de cinema, a Netflix acabou por ver uma oportunidade e pegou no filme.  

 O conceito de O Outro Lado do Vento é o de dois filmes num só:  primeiro é contado o último dia da vida de Jake Hannaford (John Huston), um grande diretor que, depois de anos de autoexílio na Europa, prepara o seu retorno a Hollywood para completar o filme que marcaria o seu regresso ao cinema. Retratado como “o Murnau do cinema americano”, Hannaford luta para concluir o seu filme. Apesar de Welles sempre ter negado que a primeira parte fosse autobiográfica, as semelhanças com a sua carreira são tantas que é impossível desassociá-lo de Hannaford. O filme, o segundo, todo ele sem recurso a diálogo (a tal visão de Murnau), é de uma sensualidade hostil e de uma liberdade criativa. Logo no início ouvimos que Hannaford não tem um guião porque ele vai sendo inventado à medida que as filmagens avançam. Por conseguinte, somos, também, seduzidos com a força do expressionismo na forma como a nudez é filmada de forma controlada no filme dentro do filme. Welles indicaria mais tarde em entrevistas que era a sua forma de tentar criar um filme artístico, um filme que não associássemos a ele. Esta é uma homenagem a uma atmosfera de cinema europeu que conquistou os americanos e que teve como consequência a nova Hollywood de finais dos anos de 1960.

Todo o filme é um paralelo com a carreira de Orson Welles, mitificado com a sua Magnum opus Citizen Kane (um dos maiores e mais complexos filmes da história do cinema). Welles sempre foi um deslocado de Hollywood, nunca se sentindo confortável com a máquina trituradora que a indústria sempre representou. Neste seu filme final, somos convidados a espreitar de forma escancarada essa indústria. É Welles a receber Hollywood de volta e, ao mesmo tempo, a rejeitá-lo com toda a sua força, empregue num tour pelo cinema americano. É um filme de amizade e de traição dessa amizade; ouvimos a certa altura: “Filmes e amizade, um mistério”.

Além disto, ainda há Huston com uma imponência avassaladora que nos agarra em todas as cenas; vemo-lo a assistir com especial cinismo ao descalabro que se abate sobre a conclusão do filme.

A obsessiva troca de planos que leva o espectador a criar uma dificuldade em entender o que se está a passar é, sem dúvida, intencional. Muitas vezes assiste-se a um estonteante desfile de personagens que pressupõe ao espectador uma atenção a todos os detalhes de cada cena, por vezes excessiva. Há câmaras por todo o lado, num tremendo voyeurismo e, depois, há o preto e branco impactante, com momentos que lembram outra obra de Orson Welles, A Lady de Shanghai, numa homenagem ao noir americano.

Welles volta para questionar as nossas ideias de cinema. Este é um filme atual apesar de ter sido gravado há mais de 40 anos; mais atual do que a maioria dos filmes que passa por aí nas salas de cinema. Infelizmente, temos de o ver num ecrã de televisão e não numa sala escura onde faria jus à sua magnífica e complexa narrativa. Por fim, ouvimos Welles na voz de Huston em tom de despedida: “Filma-se lugares belos e pessoas belas, todas essas raparigas e rapazes, até à sua morte”.

 

 

  Corrigido por Mª Constança Castanheira

AUTORIA

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Olá, sou o Luís, tenho 27 anos e nasci em Cascais. Vivo desde, quase sempre, em Sintra e sinto-me um Sintrense de gema.  Adoro cinema - bem, adorar não é a palavra adequada, venerar parece-me um adjetivo mais justo -  e sou também obcecado por política e relações internacionais. Gosto também muito de desporto.