Ivan e a complexidade de um povo
Tudo o que se possa dizer de bom sobre Ivan, o terrível será sempre escasso. É uma obra maior do cinema mundial. A celebração de um predestinado chamado Eisenstein.
Ivan, o Terrível deveria ser composto por três partes. Sergei Eisenstein vinha da grande eloquência do seu Alexandre Nevski, uma propaganda encomendada contra os alemães, não fosse a época – ano de 1938 – propícia a ódios e intentos belicistas. Com Nevski, Sergei Eisenstein recuperou a confiança de Estaline, que via nele um perigo depois da sua tentativa fracassada de viver o sonho americano em Hollywood. É então que nasce a Obra de Ivan, rodada em plena guerra – a grande guerra patriótica dos russos – de 1942 a 1944. A primeira parte do filme glorifica e quase que santifica a figura de Ivan. Na segunda parte, Eisenstein dá-nos um “louco” caído em desgraça nas suas próprias paranoias. Como seria de esperar, Estaline odiou e a terceira e a última parte nunca conheceram a sua estreia.
O retrato de um homem duro, vil, cheio de força sempre apaixonou o povo russo. A existência da Rússia é feita de líderes fortes, de Ivan a Pedro, o grande; ou de Estaline a Putin. O filme aborda a vida de Ivan Grozny, ou Ivan IV, na sua luta pelo poder e pelo objetivo de unificar a Rússia. É um épico russo cheio de vigor estaliniano? Sim, mas só na primeira parte.
A lógica é a celebração do poder do homem russo quando encara a necessidade de proteger a mãe Rússia. Eisenstein sabia que, para passar no crivo do estalinismo, teria sempre de celebrar a grandeza do povo e, neste caso, a grandeza de uma personagem que leva um povo inteiro a segui-la. Estaline não podia perder esta oportunidade de mostrar que o culto do líder é sinónimo de grandeza e superação.
Contudo, numa jogada de ilusionista – não será esse o maior talento de um cineasta? – Eisenstein não se limita a fazer a celebração do poder de um perante muitos. Cumpre a empreitada do Estalinismo, mas emprega as suas próprias reivindicações sobre a sua conceção de arte. Luta pela opulência dramática do filme, jogando e bem com a atmosfera de grandeza, grandeza essa de produção com longos cenários, muitos atores e cenas de dificuldade extrema. E há mais, Eisenstein aproveita a segunda parte do filme para criticar indiretamente o estalinismo. A personagem de Ivan tem um desenvolvimento ao longo do filme que põe em causa a tirania de um líder. Ivan passa de escolhido e predestinado a unir a Rússia a tirano embasbacado com o seu culto de personalidade.
Com isto, Eisenstein passa da celebração, falada anteriormente, da opulência de uma liderança, quase que messiânica, para a mostragem da fragilidade de Ivan, fazendo-o descer do pedestal de super-humano e colocando-o como mortal que erra e que se deixa encantar pelo autoritarismo. Há a demonstração da paranoia suprema ao vermos um Ivan, regressado do mundo dos mortos. Aí Eisenstein troca-nos as voltas. Esperaríamos todos um regresso purificado, o tal lado messiânico; mas não, Ivan regressa num delírio, procurando encontrar teorias da conspiração para o derrubar. Tudo digno de um Estaline. O jogo de luzes é fenomenal e ajuda na construção da personagem. Vemos um Ivan mais claro quando se quer transparecer pureza de carácter, contrastando com um Ivan num jogo de sombras quando a intenção é caracterizar a sua capacidade de fazer o mal.
Há cenas magníficas: a saída dos embaixadores de Kazan após as negociações falhadas. A guerra entre os dois lados. A marcha do exército de Ivan com o líder num topo quase a “comer” os seus homens é um exercício estrondoso de cinema, arrepiando-nos pelo talento ali demonstrado, digno de um predestinado. E o que falar da música composta por Sergei Prokofiev? Sublime complemento aos diálogos, fazendo parte de um casamento perfeito de duas artes.
Ivan, o Terrível seria a última obra de Eisenstein. Uma obra maldita? O realizador seria afastado do cinema pelo regime russo e morreria sozinho e sem o reconhecimento de toda a sua grandiosidade. E a pergunta ficou: Foi o cinema de Eisenstein socialista? Simplificar a coisa política seria injusto, ficamos pelo magnânimo da sua gloriosa obra.
Artigo redigido por Luís Carvalho
Artigo revisto por Ana Janeiro
Fonte da imagem de destaque: rogerebert.com
AUTORIA
Olá, sou o Luís, tenho 27 anos e nasci em Cascais. Vivo desde, quase sempre, em Sintra e sinto-me um Sintrense de gema. Adoro cinema - bem, adorar não é a palavra adequada, venerar parece-me um adjetivo mais justo - e sou também obcecado por política e relações internacionais. Gosto também muito de desporto.